Coração delator
(Arte Revista Cult)
O poema abaixo faz parte do projeto Catecismo Moreninho, disco-livro ou áudio-livro, disponível apenas nas plataformas de streaming.
Tudo está normal na Terra Quadrada,
O Sol dá a volta na quadra de madrugada,
para nascer de novo no mesmo lugar.
Destruindo uns alqueires de mata,
ninguém sente falta,
E sobra chão para plantar boi.
E sobra água para criar soja,
Terreno para fazer loja.
Índio bom pra mão de obra.
Índio treinado gosta de soja, de loja e de boi.
Com o ano que já foi os planos ficam claros:
Mais diárias pra os soldados, cabos, generais e marechais,
Para os demais, os privilégios da cavalgadura:
cinema, universidade e arte sob censura
Jornal só opina da maneira pura, sem viés.
E para caminhar no convés quem não for bovino.
E é por isso que eu digo sempre ao me deitar:
Tudo está normal na Terra Quadrada,
O Sol dá a volta na quadra de madrugada,
para nascer de novo no mesmo lugar.
Agora responda, olhos abertos,
Mas responda à sombra, os argumentos certos,
para não te confundirem com comunista:
Quantas vezes por dia faz cocô um patriota?
Quantas vezes limpa da bota a bosta o bom militar?
Basta a bosta limpar ou tem que a bosta comer?
Precisa o recruta lamber a bosta e balir
ou bastará comer e mugir?
Quanta bosta suporta o milico por seu soldo?
Qual o grau de esforço para dizer mito, mito?
Sente-se o reco mais parecido com Ulstra, Marighella ou Perla?
Bata continência e diga
Tudo está normal na Terra Quadrada,
O Sol dá a volta na quadra de madrugada,
para nascer de novo no mesmo lugar.
Ora, na escola a gente não se confunde.
Sempre fala de qualquer assunto,
E a gente já aprendeu até sobre o que tem debaixo do umbigo:
fazer amor pelo aparelho excretor está proibido.
me falou o tio do meu amigo, tomando cerveja na sauna.
Isso deu alívio na alma, pois facilitou nosso convívio com gays.
Pede a tia para que a gente repita:
acredito na ministra que veste de calcinha
toda menininha e assim acaba com o estupro.
Acredito no pastor que depois do louvor
leva os garotos para conhecer a sacristia
Para ver como é divino o amor entre os anjos.
A família baseada na fé, na santa sé e na cumplicidade.
A família de verdade vai a igreja,
para que Deus a proteja, na hora de repetir
Tudo está normal na Terra Quadrada, sim
O Sol dá a volta na quadra de madrugada, como falou meu pastor
E com louvor, há de nascer de novo no mesmo lugar, se Deus quiser.
Uma igreja em cada cinema de rua, basta
Porque no culto tem cultura, aventura e balada,
No culto tem verdade e tem doutrina,
Só não tem piscina, vagina, rola, boca e beijo de língua,
Mas lá se aprende que homem vai por cima,
e tem antes que perguntar:
Irmã, posso penetrar?
Só não aprendemos a lição da caixa forte ao final do culto
Do miliciano, com o gás e com o uber,
Mas sempre votamos em quem pede o pastor.
Tá abençoado, profetizado e já posso dizer com louvor
Tudo está normal na Terra Quadrada, sim
O Sol dá a volta na quadra de madrugada, como falou o Senhor,
E com louvor, há de nascer de novo no mesmo lugar, se Deus quiser.
Morrerão os fracos, os ratos, os que não têm o Deus,
Por isso não precisa de DPVAT, de radar nas estradas,
Não precisa de pontos, de faixas,
De cinto de segurança nem de cadeirinha
A seguradora cuida das vidas
E eu cuido da minha,
E de todos nós cuida o Senhor.
Quem se preocupa, o corpo padece,
Confio mais no meu ABS, na prece,
Na minha pistola e na minha lábia
Tudo se resolve, a justiça divina não falha,
e um carinho na crina que o pastor já nos deu.
Louvai, ó cavalgaduras:
Tudo está normal na Terra Quadrada,
O Sol dá a volta na quebrada de madrugada,
Passa na boca de fumo, sem rumo,
para nascer de novo no mesmo lugar, se a polícia deixar.
Eu deixei o vício e digo amém, Jesus.
Jerusalé, buscapé, vade retro Sacomã,
iansã e os outros diabos retintos
Arribobê, babalaô, sai caveira do metrô,
de novo o reinado ao senhor.
Falalínguas babalasqueria,
oliveiras, azeitundras, carmilombas.
Aqui é ponto de luz, milicão,
aqui é ponto de zambimba bemba bão.
Tá amarrado. Sai, diabo.
Te exconjuro,
Texas Miami, Acapulco é meu paraíso, amém.
Eu sou o homem de bem,
Minha esposa desce ao chão.
Está tudo anormal na Terra Cavalgada,
Presidente se fura de faca para ganhar eleição.
O Sol dá a volta na quebrada de madrugada,
Passa na boca de fumo, sem rumo,
quando acorda não entende nada não, e pergunta:
– ¿Qué pasó?
Louvai, ó carai, o puta buraco onde a gente caiu.
Essa porra circula há milanos,
Cavalgados por milicianos,
Esperamos a chilena hora da revolta.
Quando não terá volta,
E a Terra deixará de ser chata, e vão rodar os pé de breque
Se segura, moleque, nossa chama vai queimar!
Wilson Alves-Bezerra é escritor, professor e tradutor