Matéi Visniec: O artista é indispensável porque é o perturbador profissional da banalidade
O dramaturgo e jornalista romeno Matéi Visniec (Cato Leim/Divulgação)
O futuro é decidido por um círculo restrito de indivíduos e figuras da globalização, diz o dramaturgo e jornalista romeno naturalizado francês Matéi Visniec. Os “arquitetos do nosso futuro”, afirma, são banqueiros, militares, publicitários e políticos, enquanto escritores, filósofos, poetas, artistas e professores são excluídos da mesa em torno da qual poderosos decidem os rumos da humanidade.
“Eu milito para que o artista (portanto o teatro também) possa se sentar a essa mesa, onde nós tentamos construir o futuro e compreender as dificuldades do presente”, afirma Visniec em entrevista à CULT, por e-mail, durante sua passagem pelo Rio de Janeiro para a o XV Congresso Internacional da ABRALIC (Associação Brasileira de Literatura Comparada).
O autor acaba de lançar no país a peça Migraaantes Ou Tem Gente Demais Nessa Merda de Barco ou O Salão das Cercas e Muros (É Realizações), baseada em notícias reais sobre as dificuldade vividas por migrantes que tentam chegar à Europa. Trata-se de uma “colaboração”, diz, entre o jornalista com quase trinta anos de profissão e o dramaturgo com 21 peças publicadas no Brasil – em que usa a poesia e alguma dose de humor negro para explorar o mundo e as contradições do ser humano.
“Quando o jornalista que vive em mim está impressionado com o sofrimento das pessoas, o escritor que está em mim também se coloca a questionar sobre o absurdo do sofrimento”, afirma.
Em entrevista à CULT, fala sobre o papel do artista no debate político e social, sobre a crise migratória na Europa e sobre a urgência de se repensar a prática política.
CULT – Qual a importância do teatro para debater os problemas sociais contemporâneos, como a imigração, e, assim, despertar a consciência crítica dos leitores e espectadores?
Matéi Visniec – O teatro é um espaço de debate extremamente encorajador, interessante e gratificante para o espírito. Claro, ele não vai resolver sozinho todos os problemas do mundo, nem qualquer uma das crises atuais, como a imigração. Mas, ao mesmo tempo, o teatro permite explorar, de uma maneira diferente, os dilemas da sociedade contemporânea. Frente à complexidade de certos problemas, a análise dos políticos é nula, o aviso de especialistas se mostra insípido e inoperante e o olhar dos sociólogos é frio. O artista, o comediante, o diretor encenado, o poeta podem trazer um olhar fresco sobre a atualidade. Podem contribuir, às vezes com as ferramentas do humor e da poesia, para chegarmos mais próximos ao coração dos problemas.
Eu sempre confiei na força do olhar particular do artista. Ele é menos impregnado de ideologia, menos submisso à pressão midiática, mais livre e desinibido. O que eu quero dizer, para ser mais preciso, é que hoje em dia o futuro é decidido por um círculo restrito de indivíduos e figuras da globalização. Metaforicamente falando, há em algum lugar uma grande mesa redonda e ao seu redor estão reunidos os arquitetos do nosso futuro. Mas ao redor dessa mesa eu só vejo os responsáveis políticos, os banqueiros, financiadores, militares, grandes patrões, publicitários, promotores da indústria de ponta, diretores de multinacionais. Eu não vejo nenhum escritor, poeta, filósofo, artista, jornalista investigativo, professor.
Acho inaceitável que a voz desses ‘atores’ da realidade seja inaudível. Eu milito para que o artista (portanto o teatro também) possa se sentar a essa mesa onde nós tentamos construir o futuro e compreender as dificuldades do presente. O artista é indispensável porque é o perturbador profissional da banalidade, da monotonia, do dogmatismo e do pensamento politicamente correto.
Em Migraaaantes, você trabalha basicamente o tema da imigração. Você acredita que a imigração é um indício de uma crise europeia, ou até mesmo de uma crise democrática ou civilizatória?
Sim, você tem razão. A crise da imigração nos mostra, de fato, os limites da democracia na Europa, e mesmo os limites do pensamento humanista. A União Europeia é uma construção sem equivalentes na história da humanidade, um laboratório que eu considero essencial para todo o planeta. A União Europeia tentou, na verdade, reconciliar o liberalismo com a proteção social, a identidade de cada entidade com um sonho em comum, a liberdade com a integração… Mas esse edifício de 800 milhões de pessoas corre o risco de não resistir frente a dois bilhões de pessoas em potencial demandando asilo econômico, climático, político… Frente à força ‘desses grandes números’ e do tsunami demográfico, a Europa parece extremamente frágil. E mesmo seu discurso humanista corre o risco de recuar. A Europa arrisca-se a se dividir, isso que nós vimos com o Brexit, e mesmo a se fragmentar, porque os países da Europa Oriental não querem se tornar terra de imigração em massa. Nós podemos apenas nos questionar quais são as soluções…
Em que medida esse é um problema agravado pelo capitalismo?
O capitalismo descarrilhou em uma forma de autocelebração contínua. A lógica do consumo projeta uma falsa imagem nos países pobres ou em via de desenvolvimento que, forçosamente, ‘sonham’ em integrar-se ao modelo ocidental de ‘felicidade’. Esse modelo único de consumidor ‘feliz’ substitui o pensamento crítico e a lucidez. O consumismo tornou-se uma religião devoradora, que contamina mesmo os espíritos mais lúcidos. Parece uma espécie de doença, de vírus que infectou a imaginação de bilhões de pessoas, que passam a só acreditar nos ‘ícones’ do mundo publicitário e nos discursos reducionistas da televisão… Falar de um novo modelo torna-se cada vez mais utópico. Esse talvez seja o grande drama da humanidade hoje: ainda ter pela frente um século de celebração dos supermercados e do consumismo à beira do caos.
Na sociedade do entretenimento, qual é a importância da arte e do teatro?
Justamente, eu acho que a arte e a literatura tem um papel muito grande na sociedade do entretenimento, porque elas devem impedir a total lavagem do cérebro. A indústria do entretenimento torna-se cada vez mais dominante e se transforma em uma linguagem única. Há hoje, sobre o planeta, jovens que não sabem ver um filme de Fellini ou de Bergman, porque a linguagem de Hollywood tornou-se um “alfabeto cultural” no lugar de ser uma maneira de contar em imagens, entre outras coisas… Eu acredito que para a educação nós deveríamos preservar a identidade cultural, porque é nessa diversidade que reside o espírito crítico.
Para mim, a literatura foi sempre a melhor fonte de respostas aos problemas concernentes ao homem, à sociedade, ao mecanismo da história. Não é por nada que às vezes dizemos que uma situação é “kafkiana”. É que Franz Kafka, em seus romances, captou alguma coisa relacionada à sociedade que nenhuma outra disciplina do espírito humano foi capaz de captar. Há hoje uma forma de dominação da imagem em detrimento da palavra. Mas o pensamento não pode se desenvolver sem a dimensão abstrata da palavra. Pensar significa saber utilizar os conceitos. A imagem se endereça, no geral, a um estágio emocional primário. Não aceitar a extinção das palavras é como uma luta contra nossa transformação em mutantes. Mas a sociedade do consumo não se preocupa com essas questões. Ao contrário, é conveniente a transformação do homem dotado de espírito crítico em mutante humanoide obcecado unicamente com os valores materiais.
Qual é a influência do seu trabalho de jornalista na escrita de Migraaaantes? Qual o seu contato com essa realidade?
Eu já sou jornalista há vinte e sete anos na Radio France Internationale. Tenho acesso imediato e cotidiano a essa material, que é a aflição do mundo, e a uma informação extremamente rica (e às vezes perturbadora). Eu também já viajei muito: Tunísia, Marrocos, Irã, Turquia… Gravei depoimentos [de refugiados] na Itália, Grécia, no sul da França, Espanha. Eu poderia dizer que essa peça foi escrita em colaboração entre o jornalista que vive em mim e o escritor que vive em mim. Cada um a coletar à sua maneira informações. Em todas as minhas peças eu exploro o mundo e as contradições do ser humano com ferramentas não-científicas, como a poesia e o humor negro. Quando o jornalista que vive em mim está impressionado com o sofrimento das pessoas, o escritor que está em mim também se coloca a questionar sobre o absurdo do sofrimento. O jornalista vê tudo depois da injustiça, mas o escritor também vê o lado grotesco da própria injustiça. Em resumo, as armas dessas duas pessoas que vivem em mim não são as mesmas nessa luta em nome da compreensão da realidade, mas eles avançam no mesmo sentindo.
Migraaaantes não termina com uma perspectiva positiva. Como você observa o desenvolvimento global da imigração?
A curto prazo, no meu ponto de vista, não há nenhuma solução. Mas há uma solução a longo prazo: o ocidente e os países industrializados do hemisfério norte devem “exportar” para o hemisfério sul a prosperidade, a democracia e a riqueza. Quando a vida se tornar “suportável” e aceitável por todos, os deslocamentos de populações não serão mais percebidos como “invasão”, “ameaças identitárias e culturais” ou fatores de desestabilização.
Ao final do livro, você fala sobre “cercas individuais”. A tendência da nossa sociedade, em sua busca por segurança e individualidade, é isolar-se cada vez mais e suprimir o outro?
Eu descobri, estupefato, até que ponto aqui no Brasil a segurança individual é um problema de todos os dias, quase uma obsessão. Em minha peça, de uma forma metafórica, eu denuncio a tendência das pessoas de se cercarem de farpas, de se enclausurarem por medo do outro. Mas aqui no Rio de Janeiro, por exemplo, quase todos os edifícios são protegidos por grades e sistemas de segurança. Tudo que eu posso dizer é que a realidade é, às vezes, mais forte que a ficção. Mas, novamente, essa não é a imagem que eu queria propor à mesa onde se projeta o futuro.
O pensamento de esquerda é ironizado em Migraaaates, que expõe o discurso vazio de um presente que apenas quer se manter no poder. Você pensa que é necessário reformular o pensamento político ? Resgatar, talvez, os valores humanitários?
Sim, repensar a prática política é uma urgência. Os partidos políticos têm a tendência de se tornarem, em todo lugar, clãs rivais, sem ideologias e sem projetos. É preciso começar a introduzir a democracia no interior dos partidos políticos. Nós vivemos nessa realidade inacreditável: a vida democrática é povoada de partidos que funcionam de uma maneira ditatorial. Cada partido tem a tendência de tornar-se o produto de um guru e de seu grupo mais próximo, uma espécie de propriedade pessoal, uma estrutura piramidal que não permite a liberdade de pensamento e nem serve para o cidadão. Podemos dizer também que hoje em dia a democracia está fatigada, usada, roída pelo dinheiro, desfigurada pelos bufões da política, esvaziada de sentido por causa do pensamento politicamente correto.
Há urgência de reinventar o debate democrático de modo que o cidadão não se torne um consumidor dócil. Eu constato, na França, país de grande tradição democrática, a que ponto os partidos tradicionais perderam a credibilidade dos eleitores. A humanidade necessita de um grande esforço de imaginação e de boa vontade para salvar o único sistema que confere dignidade humana. O que constato na Europa, no que concerne à esquerda, é que ela perdeu o monopólio do discurso humanista, o que a desestabilizou em profundidade. Mas a esquerda perdeu sobretudo sua massa gravitacional, o proletariado no sentido marxista desapareceu, a consciência de classe não carrega mais o ímpeto revolucionário. Em minha peça eu faço um pouco a análise dos tiques da linguagem política. Desde minha infância romena (à época do comunismo) eu me forjei uma espécie de bússola interna. Assim que ouço um político falando, eu já sei quando ele vai falar sem dizer nada. Minha bússola me adverte e me impele a denunciar esse tipo de abuso e agressão à inteligência dos outros.
A onda de conservadorismo é global?
O jornalista que vive em mim está muito decepcionado. Ele acredita que o mundo regressa e que nós vamos deixar a nossos filhos uma paisagem humana, econômica e cultural desfigurada. Mas o escritor que vive em mim diz que o homem sempre teve a força para saltar, que um renascimento geral é possível, que um recomeço da civilização poderia acontecer. É por isso também que eu continuo a escrever.