Privado: A ação e sua prostituição

Privado: A ação e sua prostituição

Marcia Tiburi

Que 2010 seja ano de eleição é questão que põe em cena o devir publicitário da esfera pública. A publicidade é uma desapropriação da política. Se a política é ação, Antonin Artaud disse que a propaganda era a sua prostituição. A publicidade, como totalidade da vida transformada em propaganda, tornou-se a razão geral da esfera pública suplantando o sentido do que antes chamaríamos o político, o universo das relações humanas em que decisões sobre o poder estão em jogo. Daí que o ético, como decisão, esteja sempre relacionado ao político, mesmo que por eliminação. Usemos as expressões o político e a política para tratar dessa diferença de intenções com a esfera pública. Falemos d’a política como profissionalização ou cartelização d’o político. O político, como esfera, seria o espaço de exercício da cidadania individual e coletiva, não o mero exercício do poder no contexto partidário, ou no do crime ao qual se reduz a ação pela corrupção. Nem seria a simples economia independente de um projeto democrático.

E 2010 é também ano de Copa do Mundo. No entanto, mesmo sendo o futebol um excelente negócio também para a publicidade, não podemos dizer que a Copa seja mais questão de publicidade do que de futebol propriamente dito. O futebol parece importar mais para a esfera pública do que o político. Se a política é a quebra do político, o futebol parece se manter ileso em seu sentido. Talvez ele seja reduto da verdadeira experiência do político que foi danificada na política. Nesse sentido, seria possível pensar o futebol do ponto de vista de sua potência pedagógico-política em um país como o nosso? Mas o que será que a política e o político teriam a aprender com o futebol? E o que a publicidade teria a ver com isso?

Terra de ninguém

A sustentação do espaço político como espaço de convivência de diferenças à luz dos direitos dos seres humanos é algo que apenas pode acontecer se tivermos consciência teórica e prática da separação entre o político e o publicitário. Em sua lógica total, a publicidade constitui o mais novo e sutil totalitarismo caracterizado pelo controle do desejo e dos pensamentos, das relações entre indivíduos e instituições com base em ideias ou imagens preestabelecidas transmitidas a massas tratadas – de antemão – como ignorantes. Elas estão para a publicidade como a torcida para o futebol, assim como o povo está para o político. A diferença é que torcida e povo têm um desejo maior do que aquilo que simplesmente lhes é dado. São ativos e não passivos. Claro que para que as massas se tornem conscientes não bastaria extirpar a publicidade da esfera pública, sob pena de incorrer no totalitarismo oposto. É preciso formular a relação entre os dois modos de construir a esfera pública em um sentido dialético, ou seja, da tensão produtiva, mais do que de uma mera dependência inexorável entre publicitário e político.

A ideia de que este é o país do futebol, no sentido da força simbólica que o jogo tem em nossa cultura, pode ajudar a pensar a definição entre nós da ética como sendo um jogo que falta à política, tanto quanto à cultura. Um jogo de futebol é um excelente retrato da ética que podemos aprender, pois ele envolve a responsabilidade de sustentar as regras dos nossos próprios jogos. Ao faltar a ética, não temos mais o político, só a política como terra de ninguém. O campo nunca é essa terra de ninguém e ele tem um guardião que também está na mira do julgamento. Trata-se do juiz que, no jogo de futebol, é o responsável por fazer valer as regras. Faltas em uma partida sinalizam não apenas uma penalização, mas o limite da ação que todos devem respeitar. Cartões amarelos ou vermelhos são ícones claros de ações indesejadas. Na política as coisas são diferentes. Faltas políticas, como propaganda fora da época permitida, são punidas com multas inócuas diante dos lucros político-publicitários que promovem. O problema nem seria o lucro, objetivo claro do jogo do capitalismo. Mas o fato de que a publicidade, ordenando o comportamento dos partidos, ao apostar contra a lei, torna-se, ela mesma, soberana sobre as regras. Torna-se, na prática, a dona da regra.

O que a publicidade ganha não é apenas a manutenção da corrida por votos, mas instaura um espaço de exceção que vale na permissão sustentada pelas multas, e, no nível cotidiano, cria o imperativo antipolítico, de uma atitude que pode ser aceita e somente pode sê-lo em uma sociedade carente de sentido ético e moral. No futebol, no entanto, as regras são tão sagradas que o juiz se torna um “ladrão” odiado, caso desrespeite o estrito regulamento do jogo. O motivo é básico. O abuso de poder contra as regras, que caracterizaria a violência soberana do juiz, acabaria com o jogo. Do mesmo modo, o publicitário, pondo-se no lugar de um juiz que não é julgado, acaba com a política. Assim, o jogo de futebol tem uma ética baseada em regras, a publicidade não. Um juiz ladrão é punido com violência física ou verbal por interromper a lógica do acordo prévio sobre as regras e acabar com a graça do jogo. O publicitário, nesse sentido, é uma espécie de ladrão que tenta ser juiz. Pois legisla contra regras que são maiores que o jogo no qual ele faz as próprias regras.

A inverdade da Lei de Gerson

O caráter pedagógico-político do futebol pode sempre ser minado pela publicidade. Lembremos do episódio envolvendo Gerson, jogador de futebol nos anos 1970 e herói da propaganda de cigarros Vila Rica. Num ato publicitário, promulgou-se socialmente uma “lei” que leva seu nome. “O importante é levar vantagem” tornou-se a fórmula da “Lei de Gerson” que, no Brasil, veio a ser mais famosa do que a Lei de Talião. Deveria ser chamada, com mais propriedade, de “lei do publicitário”. É a lei do autofavorecimento em que cada um se autoriza a ser juiz, mas sob a forma de ladrão. A política, tal como a conhecemos, já tinha sido inventada no Brasil da ditadura, mas era o futebol, mesmo que como desejável ópio do povo, que garantia alguma esperança no espaço d’o político. O estrago n’o político causado por esse enunciado publicitário não perde para o estrago que a ditadura causou entre nós. A Lei de Gerson é o imperativo da ausência de lei, a anomia que, curiosamente, surgiu no período da ditadura como lei total.

Contraditoriamente, ainda que tenha nascido na imagem usada publicitariamente de um jogador de futebol, tal imperativo venenoso não tem nada a ver com futebol. Esporte de equipe, o futebol depende da sinergia do grupo para o bom desenvolvimento da partida. E isso faz pensar que, se este é o país do futebol, necessariamente não deveria ser o país da Lei de Gerson. O chamado futebol-arte dos brasileiros teria “jeitinho” apenas como performance estética, como “jogo de cintura” que não tem nada a ver com “levar vantagem”. Se aqui todo mundo é jogador ou torcedor, juiz, gandula, empresário do futebol, olheiro, locutor de jogos, comentarista ou, mesmo sem querer, participa de algum modo da lógica do jogo, no mínimo, por conhecer alguém ou algo envolvido no “campo”, deveríamos antes de mais nada pensar na questão do espírito de equipe que guarda o sentido do poder e d’o político como ação conjunta.

Assim como o futebol, a política tem dimensão metafísica e estética, mas, como sua base é empobrecida pela corrupção, ela dá a sensação de um dilaceramento da experiência, de coisa falsa. O futebol, ao contrário da política, nos passa uma ideia de experiência verdadeira. E não seria apenas porque o futebol parece mais “oceânico” do que a política. O futebol completa a experiência metafísica e estética com uma dimensão política, a da equipe. Mas a prova fundamental de que o futebol é político se dá justamente pela experiência com a publicidade que, na política tradicional, é sinal de sua derrocada. Fato é que, se podemos inventar um político pela publicidade – pelo uso da imagem e do discurso em sentido retórico –, não podemos, no entanto, inventar um jogador. Podemos até inventar a falsa “Lei de Gerson”, mas não um craque. O jogador de futebol sempre terá de mostrar o que promete diante de sua torcida, que é bem mais complexa que a mera massa manipulada pela publicidade. Seu discurso, sua beleza corporal, seu carisma, seus carros incríveis ou suas roupas de marca, nada disso conta quando ele entra em campo vestido apenas com a camisa do seu time, igualzinha à de seus colegas. O campo de futebol torna-se assim o único cenário da exposição da verdade de que ainda somos capazes. E isso devia nos mostrar um significado maior.

(14) Comentários

  1. Diagnóstico perfeito, resta saber quem são os médicos para indicar as cirurgias ou tratamentos mais sofisticados ou, mais do mesmo, paliativos. E se for câncer maligno?
    Tentar falar por uma média popular não é tarefa fácil, porque não requer necessariamente especialidades. E existe o risco, muito bem apontado por voce, Marcia Tiburi, de confundir política com publicidade, ou o “político” com qualquer narcisista que leva muito a sério a ‘lei de Gerson’.
    Acredito que a Lei de Talião cabe muito bem para quem aplica a ‘lei de Gerson’.
    Em outro espaço, expressei um temor real, e este texto serviu como uma luva. Eu disse: pode acontecer que na copa de 2014 nossos jogadores entrem em campo de óculos escuros. Medo e riso se opõem!
    Assim como devemos recuperar a identidade de cada jogador, para que ele realmente sinta sua responsabilidade em campo, devemos conhecer a identidade de cada juiz, dentro e fora do campo, porque é óbvio que nem todos merecem nosso escárnio. A mesma condição se estende para cada identidade que se deixa levar pelo coletivo ‘povo’, quanto para a identidade que se faz valer como político.
    O público não é um termo vasio, onde a publicidade aparece para lhe dar sentido. Eis uma boa questão para se pensar, como identidade de “político”, como evitar que todo e qualquer profissional, na incumbência de gerir um país, com ordem e progresso, não faça publicidade de seus interesses, ou seja, de si mesmo?

  2. Excelente texto! Desconstrói uma imagem criada sobre o futebol que é usada como justificativa de nosso empobrecimento ético e político!

    Thiago Paiva

  3. Belo texto.

    Para mim um abuso contra as leis instituídas, o escárnio de regras estabelecidas com a famosa expressão “lei que não pega”, pode muito bem ilustrar um ponto interessante na discussão sobre a propaganda indevida, focando na punição fracamente relativa que tais agentes levam.

    Se é lei, deveria ter participação política, algo que falta, tanto em termos de criação coletiva como em formas de aceitação advindas do empoderamento dado ao representante democraticamente escolhido.

    O efeito gerado pela não aceitação das regras e da quebra de limites éticos não faz tanto efeito quando não há espírito de equipe, quando o individual se sobrepõe ao coletivo, tanto no campo do futebol, quanto no campo da política representativa nas instituições vigentes. Também não faz sentido seguir estritamente determinadas regras que a maioria não segue, sendo assim, difícil é encontrar algum que esteja disposto a seguir tais regras ao se ver rodeado de comportamentos individuais que se mostram coletivamente indesejáveis.

  4. Que reflexão instigante!
    De fato é curioso o lugar da atividade de um público diante da decisão política, sendo que na “maquete” (ou não só) do futebol, a ação e suas reações se mostrem tão presentes, viscerais e distinguem um público tão complexo pela heterogeneidade de seus, ali, indivíduos que discutem, que percebem que há muito a se discutir.

    Bom, muito instigante, dá vontade de sair mostrando para os amigos e conversar!
    Obrigada por mais uma leitura interessante disponibilizada online.

    Bruna

  5. A análise é bem divertida, mostra coisas importantes. Mas ficam ainda algumas questões: será que o juiz, candidato, não o publicitário, está imune aos julgamentos da torcida? É claro que modifico os parâmetros do texto, questiono a equiparação do publicitário ao juiz que não respeita as regras. Só podemos aceitar a metáfora feita pela autora? Ou podemos utilizar a metáfora construída por ela para compreender de outra forma a mesma realidade? Tudo bem, sem filosofia. O fato, para mim, é: ao colocarmos o jogo como o equivalente do político, processo eleitoral, não estaríamos aceitando a diminuição do político à condição da política? Sigo, neste ponto, a divisão da autora.
    Um abraço, e parabéns pelo texto.
    twitter.com/@chapadadcorisco

  6. Será que a visão do publicitário não esta distorcida com a visão da publicidade? Ou melhor ainda… Com a visão de propaganda? E por que a ética a ver com política? Não são entendimentos distintos?

    “A diferença é que torcida e povo têm um desejo maior do que aquilo que simplesmente lhes é dado. São ativos e não passivos… É preciso formular a relação entre os dois modos de construir a esfera pública em um sentido dialético.” Não conseguiremos construir nada em nenhum sentido somente com ética. Ainda somos parasitas em relações e emoções. Talvez a verdadeira ética esteja no encontro do sentido da ético e não na propaganda dela.

  7. “Um juiz ladrão é punido com violência física ou verbal por interromper a lógica do acordo prévio sobre as regras e acabar com a graça do jogo. O publicitário, nesse sentido, é uma espécie de ladrão que tenta ser juiz. Pois legisla contra regras que são maiores que o jogo no qual ele faz as próprias regras.”
    A graça do jogo é “estabelecida” por uma lógica, “conquistada” atraves de um acordo prévio!!! Até parece que estamos discutindo “faltas” cometidas por peças de xadrez; temos os peões em campo, as classes por trás com poderes superiores. Já se pode até escrever uma obra prima metafórica em vicie versa, a sociedade de fato e a sociedade de tabuleiro.
    Assim, pode-se esclarecer muito sobre ‘divisões de iguais em partes iguais que se tornam diferentes’. Nem tanto à filosofia nem tanto à graça, claro.
    Fato: o cara foi expulso porque chutou a cabeça do adversário, sendo que no mesmo jogo e também em outros tantos, a mesma falta, cometida pelo mesmo jogador e por tantos outros, nem sequer foi notada. Em todas elas a torcida do time dos faltosos também sequer notaram as faltas, ou quando notaram, deram-se por satisfeitas da vida. Já as torcidas dos times contra os faltosos… E o juiz? E os técnicos? E os dirigentes de cada time? E os dirigentes das associações dos times? E os juízes encarregados da Justiça na sociedade? E o presidente das sociedades diversificadas? Exaustivo demais, proposta indecente, serei punido?
    Minha última palavra é: quantos juízes existem tanto no jogo de xadrez quanto no “jogo de fato”?

  8. De minha cidade, Iracemápolis?SP, 18 mil habitantes, saiu o Elano, seleção brasileira, dois jogos, dois gols ( na Copa )! Deve ser porque desde sempre jogávamos futebol de rua, feitos uns garrinchas “desgraçados” e felizes!Ética macunaímica !!

  9. Não sei se o futebol pode nos servir como uma pedagogia polítca, mas o que sempre me chama a atenção é que, sempre que intelectuais ou supostos intelectuais que não conhecem muito de futebol (há muitos intelectuais que conhecem e gostam de futebol)e se arvoram a comentar sobre o tema, partem de um pressuposto absolutamente equivocado: o de que o Brasil é o país do futebol. Definitivamente, o Brasil não o é. Eu não estou falando da qualidade do futebol, uma questão sempre discutível e que varia ao longo dos tempos, mas da paixão pelo futebol, que, penso, é o que faria de um país, ser o “país do futebol”. Neste aspecto, o Brasil não ficaria entre os dez “países do futebol”. Há outros tantos em que o futebol é, de fato, paixão nacional. Italianos, ingleses e alemães nos superam e muito nesse quesito. Argentinos, uruguaios e mexicanos idem. Em média de público, eu diria que não ficamos entre as 20 maiores do mundo. Em qualquer pesquisa que se faça no Brasil sobre torcidas de futebol, o que aparece em primeiro não é Flamengo ou Corinthians, mas os que não torcem para ninguém, ou seja, que não acompanham futebol, algo inimaginável nos países citados acima. Enfim, criou-se o mito de que o Brasil é o país do futebol e alguns intelectuais acreditaram e derraman análises sobre um falso mito.

  10. Estarrecedor é que as autoridades mundiais do futebol, lideradas pelo brasileiro João Havelange, sustentam que a “magia” do futebol reside justamente na polêmica em torno da atuação do Juiz, ou seja, preferem admitir que o resultado em campo seja obtido com procedimentos não-éticos (uso das mãos, faltas, etc…)ou interpretações errôneas ou dolosas dos fatos e da aplicação da regra (decidir se a bola ultrapassou a linha do gol…). Há ainda os personagens (jogadores) que negam as próprias trapaças (“la mano de Dios”…)Nestes casos, a pedagogia implícita na cena do esporte é a pior possível para a juventude: Transforma a trapaça em virtude e tolera o resultado injusto… Feliz contradição, na última copa os recursos tecnológicos que a FIFA se recusa a usar, desmascararam à exaustão as incoerências éticas do Futebol… No futebol americano, há muito, há forte investimento na credibilidade do resultado, essa sim, vista como fundamental para a “magia” do esporte…

  11. Bom texto, mas… A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso. A palavra foi feita para dizer. (Graciliano Ramos)
    Na próxima, usa um texto com lingauem mais popular. Querer despertar algo em quem lê, só vale se for enetendido. Lembre-se do país em que mora e da pouca instrução que atinge a maioria dos nossos habitantes.
    O futebol é popular porque é fácil de entender e nem por isso deixa de ter o seu valor.
    Até mais.

  12. Imagino “politicos” levando cartoes vermelhos e amarelos, por suas atuacoes no imenso campo chamado Brasil!!!
    otima reflexao,
    abracos,
    Eduardo

  13. Fabiano, se nivelar por baixo tambem nao dah! se estiver interessado em ler e entender, mas nao conseguir, pede ajuda!!

  14. Acredito que um tema, por mais urgente que seja, pode sim, abrir espaço para outras discussões, e a questão de nivelamento jamais será tão importante, seja “por cima ou por baixo”. Sei que o grau de instrução do brasileiro médio, em comparação com a Europa, etc., é a grande piada, onde os instruídos (quase todos) relaxam e gozam. Isso também lembra a querida Matinha, que ao falar para todos entenderem, apenas os “instruídos” se afetaram.
    Vamos pensar!!!

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