O objeto da linguística: um convite à releitura
(Andreia Freire)
Comecemos por admitir que Saussure é “um clássico”, um daqueles homens com poder de “instaurar uma tradição […] dentro da qual outros autores [puderam] se colocar”: como afirma Foucault, Saussure foi fundador de discursividade. A “novidade saussuriana”, que funda a Linguística Científica e afeta as Ciências Humanas, brota do estabelecimento de uma divisão da linguagem em a língua (la langue) e fala e na consequente afirmação de Saussure de que a língua é o objeto da Linguística – la langue é a “língua-linguística”, a tese positiva de que decorre, logicamente, outra, negativa: a linguagem não é objeto da Linguística. Esse foi um gesto decidido na delimitação do campo.
Frente a uma espécie de quebra-cabeça conceitual, estabelecido pela complexa relação entre os termos linguagem, a língua, língua(s), fala e discurso, ainda é preciso cautela ao dar o primeiro passo no texto saussuriano para não confundir a língua com uma língua particular. La langue é objeto teórico, nasce de uma enunciação, não é objeto sensível, audível, como uma língua particular. Esse ponto é decisivo para a apreensão de riquezas nos textos saussurianos e para que eles tenham consequências efetivas.
Outro passo necessário é aquele que impõe o reconhecimento da espessura do pensamento de Saussure para enfrentar a complexidade da novidade introduzida, qual seja, o reconhecimento de que a língua é “espaço absolutamente insubstancial de diferenças eternamente negativas”, propõe Agamben. Saussure escreve, no Curso de Linguística Geral: a língua é forma e não substância. Entenda-se, porém, por “forma” não as categorias/entidades abstratas da gramática, que são, afinal, entidades substanciais. “Forma”, no enunciado acima de Saussure, remete a “forças”, a movimento, à rede de diferenças da língua, que derrota qualquer viés de positividade. Sem esses cuidados, acaba-se ficando com a vulgata a que ficou confinado o pensamento saussuriano na esfera da Linguística, que encobre a racionalidade introduzida, que é governada pela negatividade. Nesse sentido é que Saussure representa “um corte” em relação a todo pensamento linguístico e à tradição metafísica que o precederam.
Saussure instala um novo saber,
uma nova discursividade: ele é um,
e não “mais um” na história das ideias
linguísticas.
Inquietante, porém, é constatar não ter sido na Linguística que a novidade saussuriana frutificou – ali, ela não incidiu, ainda que se deva fazer exceção a autores como Benveniste, Jakobson e Hjelmslev e a trabalhos mais recentes que sustentam, desde o final da segunda metade do século 20, um “retorno a Saussure” nos moldes propostos por Jean-Claude Milner. A transmissão da “consciência desperta e inquieta [desse] saber moderno”, como afirma Foucault, aconteceu do lado de fora da Linguística, em especial na Antropologia (com Lévi-Strauss) e na Psicanálise (com Lacan). Acerta Aryon Rodrigues quando afirma que, na Linguística, referências a Saussure têm um tom de “elogio fúnebre”, de pensamento ultrapassado. Frente à presença diminuida de Saussure no seu ambiente próprio, ainda ecoa a pergunta de Claudia Lemos, feita há vinte anos em um evento comemorativo dos 1980 anos da morte de Saussure, promovido pelo Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP): “Da morte de Saussure, o que se comemora?”. Ela responde: “não é, com efeito, a Linguística que a comemora”.
Fato é que menções a Saussure, feitas sob o solo de leituras de cunho filológico e gramatical, carregam uma espécie de morte: “na assimilação do novo ao velho, ao já conhecido, há neutralização do revolucionário”, afirma Claudia Lemos. Nota-se a perda do “efeito de corte” na tendência à positivação do caráter negativo das unidades linguísticas e na redução ou transmutação de operações sintagmáticas e associativas em instrumentos de descrição, que denotam um equívoco de base. A “rede de relações” que define o objeto da Linguística é revirada em seu avesso, ou seja, é traduzida como sistema de regras; como mé- todo de descrição. Tal orientação positivista, empirista, é a tônica da obliteração do pensamento do negativo, que sustenta a novidade saussuriana. Tal leitura desvitalizante privilegia, também, as dualidades (língua/fala; diacronia/sincronia; articulatório/acústico; individual/social etc.). Contudo, embora destacadas, elas não são representativas da racionalidade introduzida por Saussure. No Curso de Linguística Geral, as dicotomias aparecem como argumentos críticos ao “método incorreto”, adotado pelos linguistas e para, com essa crítica, abrir caminho para a postulação do “verdadeiro objeto da Linguística”, que é, em oposição direta às dicotomias, um objeto integral (não dicotômico) e concreto (não abstrato).
Vejamos o que escreve Saussure:
“[…] qualquer que seja o lado
[das dicotomias] por que se aborda
a questão, em nenhuma parte se nos
oferece integral o objeto da Linguística […]”.
Há, afirma ele, “uma solução para todas essas dificuldades: é necessário colocar-se no terreno da língua e tomá-la como norma de todas as outras manifestações da linguagem. De fato, entre tantas dualidades, somente a língua parece suscetível duma definição autônoma e fornece um ponto de apoio satisfatório para o espírito”.
Notemos que a língua (la langue) é a solução saussuriana para as dificuldades colocadas pelas abordagens gramatical e filológica da linguagem, que a fragmentam em facetas plurais (fonética, fonológica, morfológica, sintática, semântico-discursiva). Em direção contrária a essa dissecação da linguagem, Saussure afirma que “a língua é um todo em si mesma e um princípio de classificação”: “é a língua que faz a unidade da linguagem”. O objeto da Linguística é “objeto integral”, como sustenta Saussure, e delineado como um funcionamento (“forças em jogo, de modo perene e universal em todas as línguas). É “objeto concreto”, mas não com perfil de entidade, de substância, e sim como funcionamento regido por leis de referência internas ao sistema (por operações in praesentia e operações in absentia). A leitura redutora do Curso de Linguística Geral – obra principal de referência para linguistas o século 20 – foi, inequivocamente, diluidora do movimento do pensamento de Saussure, afirma Claudia Lemos.
Haveria, no CLG, brecha que ilumine o engano que se perpetuou na Linguística? Sem buscar desculpas para “o engano”, é possível recolher, ali, duas definições de língua, que abrem a possibilidade de duas leituras por caminhos diferentes e divergentes: uma é a que enuncia: a língua é um sistema de signos que exprimem ideias. Essa definição aparece precisamente no parágrafo que precede aquele em que Saussure sugere a instituição de “uma ciência que estude a vida dos signos no seio da vida social”: a Semiologia, que se dedicaria a estudar “em que consistem os signos, que leis os regem”. Aí o CLG é claro: para abordar adequadamente o problema semiológico, é preciso formulá-lo convenientemente, quer dizer, discuti-lo na referência à língua em si. Dessa maneira, não se está autorizado, nos termos saussurianos, a abordar a problemática do signo desligada das operações do sistema, como se o signo pudesse ser tratado como “unidade em si”. Essa exigência não parece ter sido acolhida por linguistas, já que a complicação que parece decorrer da definição de “língua como sistema de signos que exprimem ideias” é que ela propicia a leitura de que os signos, como elementos internos ao sistema, sejam unidades já prontas, estabelecidas sem o concurso das operações do sistema, isto é, os eixos sintagmático e associativo incidiriam sobre elementos dados para produzir relações de sentido. Nesse ambiente, não se dissolvem as questões ligadas seja à referência e à designação, seja à representação, que parasitam a noção de signo linguístico.
Maria Francisca Lier-Devitto é docente e pesquisadora do Departamento de Linguística da PUC-SP