Privado: Lévi-Strauss
Publico abaixo o conto Lévi-Strauss que acaba de sair na Revista Polichinello (Pará, 2013), uma publicação sempre heróica do querido Nilson de Oliveira, distribuída pela Editora Lumme e encontrada em várias livrarias.
O blog, para quem quiser conhecer a Polichinello: http://revistapolichinelo.blogspot.com.br
(P.S.: as imagens de Arcimboldo estão aqui no blog, mas não na revista, coloquei por achar que conversam bem com o meu conto…)
LÉVI-STRAUSS | Marcia Tiburi
(agosto, 2012)
O avô tinha morrido na primavera, daí que andasse vestido de frésias, uns fórmios ao comprido das pernas, folhas verdes, outras secas, pelos braços e mãos. Todo arcimboldo, todo rendilhado, ipoméias surgindo no meio da pele armada aos grandes pedaços de cascas de árvores, tiras de couro coladas na quase invisível terra vermelha sob o paletó. Das costuras do casaco saíam uns brotos clarinhos, sutis dobras barrocas, inflorescências branco- azuladas, galhos miúdos, capins cinzentos. Uma flor na lapela, desmedida no figurino em si mesmo exagerado. Montada a dentadura com marfim, aros de tartaruga nos óculos sem lentes desnecessárias a quem usa olhos de vidro. Os cabelos, fios de espiga de milho. Como não poderia faltar, no lugar da orelha esquerda, uma concha pequena, imitativa da função coclear, e onde figuraria a direita, um buraco causando o efeito de falta, o espaço de qualquer coisa propriamente dita, a sensação de ausência e essência ao mesmo tempo. Mesmo assim via e ouvia perfeitamente como pudemos comprovar. Parecia, é verdade, um espantalho, um títere recém saído de uma caixa de brinquedos velhos, um boneco surrado, enquanto, de fato, era homem, mesmo velho como estava, mesmo todo arranjado, mas ainda inteiro com aquilo que se podia colher da natureza.
Agnes tinha trinta anos naquela época. Faz uns dez anos, pouco menos, pouco mais. Tempo para ter se acostumado com a ausência do avô. A vida depois da morte seguia como a mais corriqueira das etapas da existência, inclusa a incompreensão do seu mistério, para ela que, à meia-sombra dos muros universitários, menos ensinava antropologia, como sempre fizera seu avô, do que se escondia, fingindo- se mais uma peça no grande muro entijolado das inteligências educadoras. Desde que o velho resolvera voltar à universidade ela abandonara a pesquisa com grupos de jovens de periferia que levava a sério desde a conclusão do doutorado e, entre a pena e o dever, de braços e ombros sempre a postos, conduzia o avô pelo campus.
Pode nos parecer, a cada um de nós que a observamos, que ela alucina. Conduz pacientemente o velho pelos atalhos que levam à biblioteca onde ele vasculha os livros sem tocá-los, ao restaurante onde olha com espanto para as bandejas dos estudantes, à fotocopiadora onde pede todos os dias que imprimam a imagem de sua própria mão posta vagarosamente sob a luz focada dentro da luva que lhe organiza as falanges, ao guichê do departamento de pessoal onde dão informações aos professores e, no entanto, desnecessárias para ele que já não pertence ao quadro dos ativos ou inativos.
Pode parecer a cada um de nós que ela alucina, ainda que o objeto de sua ilusão também seja nosso. E saibamos não estar enganados. Ou que, muito antes, finja, usando as supostas necessidades do velho professor assim exposto nesta incrível forma de Golem, para esquivar-se aos deveres burocráticos do dia a dia acadêmico. Aqueles de preencher formulários como quem enche caixões de ossos, ou cestos de papel reciclável como quem põe os olhos no lixo, ou plataformas virtuais, esses crematórios de ideias, das quais todos, pelo menos os que não desesperaram, queremos, sem dúvida, fugir. Mas também nós que simplesmente olhamos, sem ter o que fazer além de seguir na direção de nosso objetivo, podemos recolher as flores e as folhas que caem pelo caminho por onde passam os dois andarilhos carregando uma vida de encantamento. Ou mesmo guardar ao bolso um pequeno besouro que ora se desprende do senhor tão estranhamente apessoado. Com um pouco de paciência, podemos observar o trabalho dos marimbondos no organizado ninho que o velho leva à nuca, e pensar um pouco na vida, coisa que não temos feito por motivos que escapam ao que cabe expôr na forma desse relatório.
De todos os fatos que cuidadosamente anotamos neste ano de observação acurada em que não medimos esforços na intenção da neutralidade, podemos dizer que o momento culminante da pesquisa deu-se quando esse avô todo avariado e todavia resistente que é o próprio Lévi-Strauss – nome cuja numinosa aparição não é de anotar sem medo – proferiu sua aula inaugural no curso de zoologia. Tudo o que tínhamos observado caiu por terra resumido quando de sua conferência. Sinto um pouco de vergonha, e talvez meus colegas também, porque aquilo que eu e eles, que toda a nossa equipe podería tentar compreender levando algumas vidas, ele o explicou em minutos, menos de quinze, logo passando a falar de aspectos curiosos da vida de animais como moscas e cobras, coleópteros e moluscos. Foi no momento dos comentários, ao incluir a questão central que, como uma bomba, acabou com nossas intenções, que ele revelou o núcleo capital de sua mais nova teoria – ainda que póstuma, é bom lembrar – e que reza simplesmente: a zoologia é a única ciência humana.
Depois de aplausos desmesurados dos estudantes presentes, vi uma moça tatuada no rosto ser levada pela polícia ao gritar seus sentimentos. Um rapaz com a camiseta inteiramente furada atirou-se na direção do púlpito aos prantos. Percebendo que as emoções encandeciam, achei melhor tomar providências. Ofereci à dupla familiar uma carona ao hotel onde o velho estava hospedado desde que voltou à vida. Não era minha obrigação ser gentil, de qualquer modo não atrapalharia o que eu porventura tivesse a fazer, tal era a sensação estupefaciente em que me encontrava e que me impediria de concentrar-me nos dados matemáticos dos relatórios a cujo trabalho eu destinaria o resto da noite. Agnes preferiu entrar com o avô, os sensores da porta automática não se acionavam com a presença do velho, do mesmo modo como ele não conseguia andar sem o amparo da neta. No caminho, pude perceber o orgulho que Agnes sentia pelo velho avô que mesmo morto resolveu, segundo palavras que me soaram um pouco singelas demais, voltar à vida para nos ajudar a entender o mundo. Com o cuidado de não ofendê-lo e tampouco mentir sobre a verdade dos fatos, Agnes explicou-me que o avô estava para transformar-se em papel, fato inevitável na tanatografia de certas pessoas, mas que preferiu esforçar-se um pouco mais sentindo-se ainda útil à sociedade humana e, por isso, com este jeito meio estranho que nos faz lembrar um zumbi, elegante é verdade, mas ainda um zumbi, ele voltou ao mundo assemelhando-se a um arranjo floral rústico.
Voltei pelo caminho de plátanos que levava à universidade, convicto com o fato de que o vagar de ambos pelo campus não é problema tão grande desde que não os percamos de vista, o que atrapalharia a metodologia que, com tanto custo, conseguimos justificar perante a comissão científica que aprovou esta investigação. Não podemos interferir em sua liberdade de ir e vir, não podemos fundamentar a escolha de Agnes, menos ainda julgar sua conduta. Tampouco está em nosso poder mandar o velho Lévi-Strauss de volta ao seu mundo, pois um dos limites de nossa pesquisa é que não conseguimos entender do que se trata exatamente quando aplicamos o quesito “mundo”.
Temos apenas que cuidar de seus passos esperando que não perturbem a vida do ensino e da pesquisa no campus, correndo o risco de serem convidados a retirarem-se pelos administradores do espaço. Assim, cada um na sua, cada macaco no seu galho, cada rato em sua toca, poderemos continuar a observação cujo objetivo não é outro que o mero visar, o contar por contar. E, por fim, com a declaração pura e simples do caráter único de tudo o que há, providenciar o retorno às coisas mesmas, a saber, ao intento mimético de nos tornarmos iguais a eles, seguindo a regra mais do que antiga, e sempre cientificamente desaprovada, de que cada um se torna aquilo que contempla.
E por que faríamos isso se, no fundo, no fundo, reprovamos o que fazem? É que temos inveja ao mesmo tempo que amor, misturamos nosso ressentimento ao desejo de vida, nosso niilismo ao senso de justiça e, assim, meio prepotentes, meio atrapalhados, só o que buscamos é uma ocasião para chorar. Suspeitamos, eu e meu grupo de pesquisa, do qual não me separo desde aquela perigosa carona, que poderemos chorar muito olhando para Agnes acompanhando Lévi-Strauss no êxtase que, com ele, ela também compartilha, até que o mistério das coisas mortas e vivas se torne insuportável e nos leve para fora de nós mesmos.