Questão de gosto?

Questão de gosto?

Ainda há sumo para espremer da surrada discussão sobre o que nos leva a eleger ou rejeitar um artista ou uma música

Pedro Alexandre Sanches

Johnny Alf completou 80 anos em 19 de maio de 2009, poucos meses após o encerramento do festivo ano de comemoração dos 50 anos da bossa nova. Diferentemente do movimento que ele ajudou a pavimentar e que atravessou 2008 mimado em museus, pavilhões e ocas, Johnny passou seu aniversário num hotel-residência para idosos, em Santo André, no ABC paulista.

Johnny Alf é um artista brasileiro, carioca, negro, de origem suburbana, largamente reconhecido como iniciador e inspirador de versos e notas musicais que se tornariam mundialmente consagrados como “bossa nova”. Ainda assim, parabéns a ele nesta data querida a comunidade cultural brasileira ofereceu com resistente parcimônia. Mesmo mestre inconteste (e em parte por temperamento próprio), tem se colocado historicamente à margem da bossa e de outras bossas.

Unha e carne daquele movimento foram os cariocas Tom Jobim & Vinicius de Moraes, como todo mundo sabe. Galã além (ou aquém) de gênio, Tom deslizou pela música e pela moda montado em fina estampa de garotão de Ipanema. Vinicius era ex-estudante em Oxford, ex-crítico cinematográfico, poeta consagrado e ex-diplomata em Los Angeles e Paris quando, já maduro, vestiu melodias em versos como tristeza não tem fim / felicidade, sim.

João Gilberto, 78 anos recém-completos (como será a fatídica efeméride de seu 80o aniversário?), é baiano interiorano, de Juazeiro. Mas nasceu filho de pais prósperos e dono futuro de uma batida de violão que o diferenciaria de todos os demais mortais. A partir de 1958, gravitariam em torno de sua aura dezenas de jovens músicos oriundos da brisa zona sul do Rio de Janeiro (e do sexo masculino, em maioria absoluta, mais uma Nara Leão aqui, outra ali).

Roberto Carlos, 50 anos de carreira musical nesta noite, tentou fazer bossa nova antes de virar Roberto Carlos. Vindo do interior do Espírito Santo, Cachoeiro de Itapemirim, principiou perseguindo as modas da hora, notadamente aquela orquestrada pela voz pequena de João Gilberto. Surgiu, é fato, titubeante e desorientado, mas, como todo mundo sabe, não é verdade que talento não possuísse. É pública e notória a historinha de que, ao tentar se intrometer nas rodas finas da bossa, foi congelado pelo desprezo de 11 em cada 10 daqueles jovens que orbitavam a lâmpada de João. Quem RC teria sido se a bossa não o tivesse desdenhado, jamais saberemos.

Assim como seus chapas Wilson Simonal, Erasmo Carlos, Jorge Ben e Tim Maia, Roberto morava no outro lado da cidade, zona norte, subúrbio. Para encontrar afluentes desobstruídos do rio chamado sucesso, precisaram, cada um à sua maneira, contornar a pontuda ilhota da bossa nova e inventar suas próprias engenhocas musicais, de preferência bem distantes da língua materna.

Não se está tentando dizer aqui que a bossa nova era (e é) um castelo elitizado ao sopé do terreiro depois batizado de MPB, música POPULAR brasileira. Era e é, e também isso todo mundo sabe. O que aqui se quer afirmar é que esse castelo (o da MPB como um todo) foi construído sobre a lógica violenta da luta de classes. [O mesmo eu poderia falar de minha própria profissão, o jornalismo, mas isso é outra conversa.]

Ou não seriam de origem social e tom da pele as mais gritantes diferenças entre Tom & João, de um lado, e Johnny Alf, do outro? Consta que Jobim chamava Johnny de “Genialf”, mas isso nunca foi divulgado pelo autor de “Eu e a brisa”, nem foi legitimado pela comunidade que, insinuava o próprio maestro soberano, tinha (tem?) vergonha de ser brasileira. E essa é uma história corriqueira, exemplos se amontoam.

Antes de se tornar política e eticamente condenável, Simonal se tornou musicalmente grosseiro, pilantra, artífice da “pilantragem”, inverso simétrico (e negro) das sutilezas e dos maneirismos de outras bossas. Talvez tenha perdido a chance do perdão antes mesmo de – digamos em termos puritanos – pecar.

Para se tornar semiunanimidade, a suburbana gaúcha algo abrutalhada Elis Regina teve de passar por um longo e dolorido processo de… “depuração”, “sofisticação”. O preço foi provavelmente alto demais para uma indomável que se tentava domesticar.

Jorge Ben (Jor) faz a turma toda dançar até o sol raiar, mas alguém escuta a oficialidade bradar que Jorge é João, que Jorge é gênio, que Jorge é Jobim? Por que será que não?

No seio da música mais popular brasileira, aquela à que foi negado o título de nobreza (fajuta?) “MPB”, a sutileza jamais foi reconhecida. Não faz diferença se é Waldick Soriano ou Odair José, o sujeito que venha de fora do eixo político-geográfico e não seja escolado está desde o berço condenado a não ter bossa, a não ser tropical(ista), a não saber fazer MPB. Sobre isso Paulo César de Araújo discorreu brilhantemente no libertário livro Eu não sou cachorro, não – Música popular cafona e ditadura militar (Record, 2002).

Chego finalmente à afirmação que mais gostaria de fazer. Somos (fomos?) uma coletividade que finge se importar (e se incomodar) com música baseada em critérios estritamente estéticos. É mentira. Do alto de nossos pedestais, costumamos discursar aos sete ventos contra a suposta “pobreza” musical de baladas românticas, boleros, modas sertanejas, raps e funks “americanizados”, pagodes “mauricinhos” (mas quem são mesmo os mauricinhos, cara-pálida?).

É mentira. Apreciação estética está lá atrás em nossas listas de prioridades – não raro enchemos a boca para miar que não ouvimos e não gostamos deste ou daquele “cafona”. Não, os regentes de nossos “gostos” e “sensibilidades” musicais são mesmo os nossos preconceitos – sobre cor da pele, status social, sexo, orientação sexual, escolaridade ou o que for. A estética, coitada, é o bode expiatório que paga todo o pato. Não fosse assim, Johnny Alf talvez morasse dentro do castelo da MPB. Mas aí Johnny Alf não seria Johnny Alf.

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