"O vestibular é uma aberração"
por Eduardo Simões
No dia 1º de novembro, o educador mineiro Rubem Alves surpreendeu seus fiéis – e numerosos – leitores da Folha de S.Paulo ao despedir-se da coluna que escrevia semanalmente para o jornal, alegando que seus “78 anos estão pesando”.
À CULT, um jocoso Alves disse que parou a coluna para se dedicar à “vagabundagem”. Sério, afirmou que anda “meio desligado” do noticiário, razão pela qual preferia não falar sobre a recente crise entre alunos da USP, a reitoria e a presença da polícia militar no campus. “Aquilo lá é um problema policial. E eu não entendo nada disso. Sou um educador, não um sargento de polícia”, diz Alves, que também foi pró-reitor de graduação na Unicamp.
Leia abaixo trechos da entrevista concedida pelo escritor por telefone, de Campinas (SP), onde mora.
CULT – Sua coluna semanal não tem volta?
Rubem Alves – Parei com a coluna porque estou com 78 anos e, para mim, já era uma coisa muito pesada. Eu tinha de pensar muito. Às vezes acordava às 3h da madrugada pensando no que iria escrever. Não mereço mais isso, cheguei a uma fase da vida em que posso me dedicar a uma atividade intelectual muito importante, que é a vagabundagem.
É sério. Escrever tem de ser algo que dê prazer. E eu não posso atrelar minha vida, já no fim, a uma atividade como a crônica. Recebi as maiores demonstrações de afeto, mas o problema é que estou muito cansado.
Na sua crônica de despedida, o senhor mencionou ausências…
Quem está escrevendo para um jornal tem de escrever sobre presenças, o que está acontecendo hoje. A própria palavra jornal vem de diário. Mas minha cabeça não segue o diário, ela voa muito. E quando a gente vai ficando mais velho fica meio desligado das questões que interessam às pessoas.
O senhor não acompanha o noticiário?
Não, eu leio muito pouco, leio as manchetes. As notícias são sempre as mesmas, elas têm rótulos diferentes. Você lê as notícias e elas são de uma banalidade, de uma repetição revoltante. Então não quero gastar meu tempo com isso, mas com coisas que me deem alegria.
Assuntos como a crise entre alunos da USP, a recente ocupação da reitoria, a presença da PM no campus não lhe interessam?
Elas não têm nada a ver com a educação. Aquilo lá é um problema policial. E eu não entendo nada disso. Sou um educador, não um sargento de polícia. Não perco meu tempo com isso porque não posso fazer nada, e o que eu poderia dizer seria absolutamente inútil.
E os sucessivos problemas com a formulação e aplicação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), o senhor acompanha com interesse?
As coisas que estão acontecendo são burocráticas, não têm a ver com educação. O Enem é muito parecido com o vestibular, que eu detesto. Gastei muito tempo da minha vida lutando para acabar com o vestibular. Veja bem: se eu fizer vestibular ou Enem, serei reprovado. Todos os reitores das universidades seriam reprovados.
Há uma frase que repito e acho importante: a educação acontece depois que o esquecimento fez o seu trabalho. De modo que eu gostaria que o exame fosse feito somente um ano depois de o aluno terminar seus estudos, para saber realmente o que ficou. E o que sobra do ensino médio hoje, em geral, é nada.
A coisa mais importante para mim não é o exame em si, mas o que esses exames fazem com tudo que vem antes. As crianças já começam a ser moldadas para passar no vestibular, que é a ideia que passou a ser dominante em nossa educação, assim como colocá-las em escolas ditas fortes.
Os pais são os maiores inimigos da educação porque não sabem o que ela é. Acham que é preparar para os exames. E aí você elimina a poesia, as artes, tudo aquilo que faz parte da verdadeira educação, mas que é eliminado pelos próprios exames.
O senhor daria sugestões de ajustes ao que temos aí hoje?
Quando fui pró-reitor de graduação na Unicamp, organizei uma série de encontros na universidade para saber dos professores o que eles achavam que seria um sistema justo para a admissão nos cursos. Mas isso não existe. Todos são defeituosos de alguma maneira porque alteram tudo que vem antes. Eles predeterminam os programas que vão ser dados nas escolas.
Lembro que um dos professores chegou para mim com uma risadinha na boca e disse: “Tenho um sistema muito simples: sorteio”. Achei absurdo, mas depois comecei a pensar que acabaria com os cursinhos pré-vestibular e as escolas ficariam livres para ensinar as coisas que são essenciais para a educação.
Os vestibulares são uma aberração porque, quando o aluno termina o segundo grau, ele já tem direito de entrar na universidade. Os exames existem somente para escolher, dentre os que passaram, aqueles que tiveram melhores notas.
Na Unicamp, havia uma professora que dizia que seus piores alunos eram os que haviam passado nos primeiros lugares do vestibular. Em suas aulas, sempre tinha um desses alunos que perguntava qual era a resposta certa mesmo. O vestibular criou na cabeça dos moços e de todo mundo que existe uma “resposta certa mesmo”. A ideia de pesquisa, de busca, de dúvida acabou. As dúvidas não são erros, elas são absolutamente necessárias. O processo foi eliminado.
Vou dar um exemplo: Kepler foi um dos maiores astrônomos da história. As leis de Kepler você pode decorar em dez minutos. Mas Kepler levou anos para chegar até elas. O processo de aprendizado é isto: não é a busca pelas respostas certas, mas o processo de pensar.
O que o senhor tem feito com o tempo antes dedicado à coluna?
Neste momento preciso, estou indo através de meus arquivos. Tenho muita coisa arquivada que gostaria de compartilhar com as pessoas. Coisas leves, divertidas. Eu sou um palhaço. Nietzsche tem um poema muito bonito, em cujas últimas linhas ele diz quem ele é: apenas um palhaço, apenas um poeta.
Uma vez estava nos Estados Unidos dando um curso e, na véspera da minha volta, apareceu uma moça loira dizendo que havia sonhado comigo. Na hora em que ela falou isso eu já comecei a ter fantasias, né? Aí ela parou um pouquinho e disse que sonhou que eu era um palhaço. E ela falou isso como um grande elogio.
Aliás, esse tema do palhaço era algo que eu gostaria de desenvolver. Tem um famoso filósofo polonês, Leszek Kolakowski, com um ensaio interessantíssimo chamado “O Sacerdote e o Bufão”. E aí não se trata do sacerdote católico, mas daquele que sacraliza as coisas. E o bufão é aquele que ri e, ao rir, quebra todos os dogmas, desafia o que está posto.
Há também uma piadinha que ilustra bem isso: antigamente tinha o bobo da corte, que participava das reuniões com o rei. O rei havia feito uma corrupção qualquer e começou a dar as desculpas dele, muito esfarrapadas. O bobo deu uma risadinha e disse: “Majestade, há explicações que são piores do que uma ofensa”.
O rei ficou furioso, expulsou o bobo, exigindo que ele se explicasse até o fim do dia. Caso contrário, passaria uma semana no calabouço. No fim do dia, o rei estava andando por um corredor cheio de estátuas, e o bobo estava escondido atrás de uma delas. Na hora em que o rei passou, ele pulou atrás e apertou as nádegas do rei. O rei deu um berro de fúria, e o bobo disse: “Perdão, majestade, eu pensei que fosse a rainha”.
Eu quero essa leveza, entende? Por isso eu não sirvo muito pra jornal. Jornal é uma coisa muito séria…
Mas com os livros o senhor não para…
Ah, com isso eu não consigo parar. Sabe, tenho uma birra muito grande com [o gênero da] autoajuda, porque ela vive contando mentiras para as pessoas. Por exemplo: “O seu lugar é o pódio”. Ué, se todas as pessoas reunidas ficarem convencidas de que seu lugar é o pódio, de quantos pódios vamos precisar?
Ou ainda: “Nunca desista de seus sonhos”. Hitler também não desistiu dos dele. Vou te fazer uma confissão: [a birra é] por pura inveja. Você vai lá na livraria e todo mundo compra autoajuda, enquanto meus livros modestos estão lá quietinhos.
Então resolvi fazer um livro como se fosse de autoajuda, que acaba de sair. Mas que é uma coisa séria, filosófica. Ele se chama Palavras para Desatar Nós (Papirus). Começo o
livro citando cinco filósofos, um deles o Wittgenstein, que diz assim: “Filosofia é uma luta contra o feitiço das palavras da nossa inteligência”. Quis mostrar a importância das palavras para produzir uma limpeza na confusão mental da gente.
E já tem outro livro por vir?
Já estou com um livro praticamente pronto, de memórias. Estou com vontade de dar o nome a ele de “Álbum de Fotografias”, pois num álbum cada retrato não tem necessariamente relação com o outro. Valem por si mesmos, não têm de contar uma história. E esse meu livro será assim: fotografias da vida universitária, da vida política, uma miscelânea de questões como a natureza, a morte etc. Não vão necessariamente contar uma história.
Com mais de 70 obras publicadas, o senhor mantém o sonho de ter um best-seller, como sugere em sua coluna de despedida?
Todo mundo que escreve ou compõe tem esperança de ser reconhecido. Todo mundo é narcisista e busca uma imagem. Para o escritor, essa imagem é a lista dos mais vendidos. Eu nunca cultivei esse ideal. Mas, quando um livro vende um pouquinho mais, fico feliz.
(3) Comentários
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Bravo,
professor Rubem Alves,
em tempos cínicos e indecentes, tal qual experienciamos, é melhor não lançar suas pérolas aos porcos!
abs do Sílvio Medeiros
Campinas, é dezembro de 2011
Excelente matéria.
O vestibular é uma ilusão catastrófica, que move uma imensa indústria – mesmo nas universidades do governo. Pra passar, é quase impossível sem cursinho ou se não for possível, tem que pagar uma faculdade particular. É impossível ter uma dominância excelente nos três eixos do conhecimento e ainda exigir isso de adolescentes e é uma preparação dolorosa e desgastante. Pode ser um sorteio, em que mesmo sabendo o conteúdo, é necessário saber “a” resposta certa, como dito na reportagem, além de estar bem no dia, sem nervosismo, enfim, seremos robozinhos para enfrentar um mundo desumano. Passar no vestibular não é sinônimo de sucesso ou felicidade, pois cada um faz a vida do seu jeito e não há fórmulas para esses dois objetivos tão almejados.