Laços de família

Laços de família

Marília Kodic

Conterrâneos e contemporâneos, agentes ferrenhos da batalha ideológica em um Brasil tomado pela ditadura – um, através de seus romances; outro, por meio de sua intensa luta política –, dois baianos assumem as telas do cinema nacional este mês, graças à iniciativa de seus familiares.

Carlos Marighella (1911-1969), o comunista mais procurado pelo regime militar, ganha documentário dirigido por Isa G. Ferraz, sua sobrinha: “Ele acreditava profundamente na possibilidade de transformar o Brasil em um país muito melhor, e apostou todas as suas fichas nessa utopia. Foram 40 anos ininterruptos de luta por um ideal”, diz. O filme conta com depoimentos de figuras emblemáticas, como o crítico Antonio Candido, além de narração do ator Lázaro Ramos.

Já Jorge Amado (1912-2001) tem sua obra Capitães da Areia transformada em filme por sua neta, Cecília Amado. “Li o livro aos 14 anos, e fiquei apaixonada pela sua mensagem de liberdade”, conta ela. Em relação ao avô, lembra: “Andávamos juntos nas ruas de Salvador. Ele adorava prosear com as pessoas, feirantes, baianas, e eu aprendi com ele a ter carinho e me sentir próxima do povo”.

Marighella participa da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo e do Festival do Rio, evento do qual participa também Capitães da Areia, que já está em cartaz nos cinemas.

Leia abaixo as entrevistas com as diretoras.

CULT – Como era o Jorge Amado avô?

Cecília Amado – Jorge era um super avô. Fui muito próxima a ele na minha adolescência. Trocávamos cartas quando estávamos distantes e andávamos juntos nas ruas de Salvador. Ele adorava parar para prosear com as pessoas na rua, feirantes, baianas e eu aprendi bastante com ele a ter carinho e me sentir próxima do povo.

Lembra-se da primeira vez que leu Capitães da Areia?

Sim, foi aos 14 anos. Foi uma leitura muito envolvente e marcante, como é para a maioria dos jovens. Fiquei tocada e ao mesmo tempo apaixonada pela mensagem de liberdade que tem no livro.

Qual seu personagem preferido do livro?

Na adolescência, tinha o Pedro Bala como herói e uma paixão verdadeira. Hoje, acredito que a Dora simboliza a mulher brasileira: doce, maternal, e ao mesmo tempo guerreira, batalhadora.

No elenco do filme, estão jovens de ONGs. Era importante que fossem pessoas “reais” para fazer o papel dos protagonistas?

O elenco foi nosso maior investimento, o maior desafio e, também, acredito que o grande trunfo do filme. Eles precisavam ter o espírito e os sentimentos dos personagens, mas também estar preparados para a arte como profissão. Ter disciplina, ser dirigíveis, flexíveis. Se fossem 100% o personagem eu não conseguiria tirar as nuances que o filme pede. Essa parceria foi fundamental como suporte social e também de formação dos artistas/atores.

Como foi a participação do Carlinhos Brown? Você que o escolheu para compor a trilha sonora do filme?

Carlinhos foi minha primeira escolha e participou do projeto desde o início. Acho ele um músico muito completo, e a trilha percorre desde ritmos africanos, passando por latinos, tem uma vertente romântica e é pop e vibrante ao mesmo tempo. Só ele me daria isso, conhecendo tão bem a Bahia de Jorge Amado e o universo dos Capitães da Areia, uma vez que ele mesmo criou uma ONG no Candeal e lida diariamente com esses meninos.

CULT – Na sua opinião, qual a maior qualidade de Carlos Marighella?

Isa G. Ferraz – Acho que Marighella tinha muitas qualidades. Foi um homem de mil faces, que conhecia o Brasil e acreditava profundamente na possibilidade de transformá-lo em um país muito melhor. Ele apostou todas as suas fichas nessa utopia e, por quatro décadas, agiu nesse sentido.

O interessante é que ele estava sempre se reinventando, porque trabalhava com e para o seu tempo. Nunca ficou engessado num pensamento datado. Meio antropofagicamente, se alimentou de Lenin, Lampião, das várias lutas populares da história do Brasil, de Ho-Chi-Min e Che Guevara, de música e poesia…

E, bem perto de ser assassinado, em 1969, caçado como o inimigo número 1 da ditadura militar, diante da pergunta: “Quem é você, Marighella?”, ele respondeu: “Sou um mulato baiano”.

Ao terminar o documentário, encontrou um Marighella diferente do que imaginava?

Sim, um homem muito mais complexo e interessante do que eu imaginava. Sempre se fala do Marighella guerrilheiro, aquele que pegou em armas e sequestrou o embaixador americano. Mas o que poucos sabem é que a vida dele é infinitamente mais rica que isso, a começar por sua origem mestiça, por sua enorme inquietude diante de tudo, seu conhecimento e amor pelo país, seu humor…

Marighella é um tremendo personagem, e a sua vida é uma verdadeira saga. Foram 40 anos ininterruptos de luta por um ideal! Através da sua vida, a gente compreende melhor alguns dos dilemas e dramas do século 20.

Qual o fato mais interessante que descobriu?

Pessoalmente, me fascinou muito saber que gente como Godard, Glauber e Sartre admiravam Marighella por sua liberdade de propor coisas novas, por suas ações naquele momento de mudanças tão intensas.

Surgiram vários outros nomes de artistas e intelectuais que teriam apoiado a ALN [Ação Libertadora Nacional], mas não pude apurar com segurança, e então resolvi não colocar no filme. Gente como Miró e Rosselini, por exemplo. Era um tempo muito interessante, com o mundo pegando fogo.

Houve alguém que se recusou a dar depoimento?

Não. Nós entrevistamos todos aqueles que procuramos. Difícil foi conseguir colocar tanto material em um único longa. Muita coisa ficou de fora. O que tivemos em alguns casos foram problemas de acertos de agenda.

Caetano Veloso, por exemplo, que eu queria muito entrevistar e que aceitou fazê-lo, não pode gravar nas datas que oferecemos por causa de viagens e outros compromissos. Ele lamentou publicamente não ter podido participar do filme. Se bem que, na verdade, Caetano participa sim, através de sua música “Sugar Cane Fields Forever”, que está na trilha.

Como se deu a participação de Mano Brown?

Desde a primeira versão do roteiro, que escrevi em 1996, pensei que o filme teria de ter as palavras potentes e cortantes de um rapper que, de certa forma, atualizasse essa força do Marighella para os dias de hoje. Tenho enorme admiração pelo trabalho do Mano Brown, que considero um grande poeta. Fui procurá-lo e ele topou participar do filme. Assistiu diferentes cortes, deu ótimos palpites e, por fim, apresentou um rap maravilhoso.

13º Festival do RioOnde: Diversas salas de cinema no Rio de Janeiro (RJ) / Quando: de 6 a 18/10 / Info.: www.festivaldorio.com.br

35ª Mostra Internacional de Cinema em SPOnde: Diversas salas de cinema em São Paulo (SP)/ Quando: de 21/10 a03/11 / Info.: www.mostra.org.br.

(1) Comentário

  1. Prezados Leitores,

    O resgate desse grande companheiro é o que precisa ser feito, não apenas como lembrança, mas, como instrumento de educação política do nosso povo – sem a qual não haverá o primeiro passo para a grande caminhada. Parabéns, portanto aos seus idealizadores.

    Seguem abaixo, 12 estrofes de um cordel de 226 (estrofes) que fiz sobre o grande lutador Marighella.

    Como bem disse Karl Marx
    Numa máxima brilhante:
    Em qualquer país ou época
    É a classe dominante
    Quem escreve a própria história,
    Sempre tão contraditória,
    Quase sempre alienante.

    Sem usar qualquer sofisma
    Dos escribas de aluguel,
    Desses historiadores
    Que não cumprem seu papel,
    Vou tentar por lealdade
    Colocar com tal verdade
    Mais um mártir no cordel.

    Como poeta do povo
    Eu me sinto na missão
    De trazer à tona feitos
    E pessoas que, na ação
    Responsável, de grandeza,
    Tentaram manter acesa
    A luz da revolução.

    Vou contar em versos simples
    A história de um guerreiro,
    Lutador, um idealista
    Com visão de mundo inteiro,
    É mais um dos esquecidos
    Dos mártires, dos excluídos
    No cenário brasileiro.

    Eu, assim, abro a estrofe
    Que em versos se escapela,
    Rimados, metrificados,
    Vou expor todos na tela
    Pra dizer, com ideário,
    Do revolucionário
    Que foi Carlos Marighella.

    Talhado para os embates
    De gigante dimensão,
    Todo ideário externado
    Lá estava em cada ação,
    A luta por liberdade
    Por justiça e igualdade
    Era, pois, sua paixão.

    Como um poeta voltado
    Sempre para a humanidade
    Compôs um belo soneto
    Onde externa a lealdade,
    Sua vida, o sacrifício,
    Se preciso, no ofício
    Às causas da liberdade.

    Desejava Marighella
    Lucidez bastante quando
    A fatal hora chegasse
    Para que, observando
    A liberdade fluindo,
    Pudesse morrer sorrindo
    Com seu nome murmurando.

    “Tão só no campo da arte
    Não ficarei”, confessava,
    Demonstrando que a poesia
    Pra ser plena, precisava
    Fazer do verso o facheiro
    Pra servir ao bom guerreiro
    Que nas trevas caminhava.

    Querendo dizer também
    Que um revolucionário
    Se ater não pode nunca
    Ao imobilismo hilário,
    Ele tem com ação e arte
    Que estar em toda parte
    Combatendo o adversário.

    Com saber e experiência
    Que ganhava em cada ação,
    Afirmava Marighella
    Como sendo uma lição:
    É dever prioritário
    De todo revolucionário
    Fazer a revolução.

    Mas, o guerreiro tombou,
    Não pôde continuar…
    Numa ação tão vergonhosa
    Do regime militar,
    Sem direito a choro e vela
    Matariam Marighela
    Em uma trama invulgar.

    Um abraço,

    Medeiros Braga

    medeirosbragab@gmail.com

Deixe o seu comentário

Novembro

Artigos Relacionados

TV Cult