O que é uma experiência constitucional bem-sucedida?

O que é uma experiência constitucional bem-sucedida?
A Constituição está em crise, e esta é uma crise de identidade. Ironia ou não, uma crise dos 30 anos (Arte Andreia Freire/Reprodução)

 

A Constituição brasileira de 1988 está ingressando na casa dos 30. O aniversário pode parecer insignificante na história constitucional comparada: basta pensar nos 230 anos da Constituição dos Estados Unidos (ratificada em 1788), ou nos 69 anos da jovem senhora Constituição Alemã (1949). Entretanto, na perspectiva do desenvolvimento das instituições políticas do Brasil, o aniversário tem significado histórico e a avaliação dessas três décadas é fundamental. A Constituição de 1988 é a terceira mais duradoura das oito que o país já teve, perdendo apenas para a Constituição do Império, de 1824, e para a Constituição da Primeira República, que vigorou de 1891 a 1930. Diferentemente dessas duas, a Constituição de 1988 conseguiu sua estabilidade num ambiente que se pode chamar mais propriamente de democrático, com ampla participação e sufrágio universal. Além disso, das três, é a única que foi promulgada por Assembleia Constituinte eleita e representativa, e não outorgada, de cima a baixo, quer pelo Imperador (1824), quer pelo Presidente da República (1891). O significado dos 30 anos não é trivial, mesmo que a longevidade constitucional não seja um fim em si mesmo. Em que sentido, contudo, temos razões para comemorar esse aniversário?

Produzida por uma das experiências políticas mais férteis e empolgantes da história política brasileira – a Assembleia Nacional Constituinte de 1987/1988 – a Constituição de 1988 nasceu com dois propósitos bem marcados. De um lado, anunciava a “remoção do entulho autoritário”: a Constituição deveria estruturar os termos de um compromisso institucional pragmático e suprapartidário pela democracia, engendrado pelas elites políticas da época. Não almejava aperfeiçoamento institucional qualquer, mas a transição de regime, a ruptura com a experiência autoritária da ditadura militar. De outro lado, emplacou um projeto audacioso de transformação social, que envolvia, entre outras coisas, “mudar o homem em cidadão”, fazendo-lhe “credor de direitos e serviços”; daí apelidá-la “Constituição da mudança e não do status quo”, “Constituição-coragem”, ou, enfim, “Constituição cidadã”.

O duplo propósito da Constituição deixa marcas importantes na sua arquitetura normativa. Princípios constitucionais muito abstratos, por vezes conflitantes entre si, sinalizaram a medida do consenso possível em uma Constituinte tão heterogênea. Previsões programáticas de direitos se misturam à determinação constitucional de políticas públicas bastante específicas (como o Sistema Único de Saúde – SUS), tramando uma costura muito disputada entre os contornos do Estado (polity) e a atuação específica de governo (policy). Para dar tração jurídica a uma máquina institucional ancorada em direitos de múltipla origem ideológica, a Constituição espalha competências, sobrepõe agências e força responsabilidades compartilhadas. O modelo resultante, ao pressupor constante interação e superposição institucional, afasta-se da separação de poderes ortodoxa. Projeta um federalismo descentralizado, dependente da capacidade de coordenação e articulação política e econômica da União. Aposta também, para a proteção e garantia de direitos, em um Poder Judiciário de musculatura mais vistosa, capaz de manejar instrumentos de implementação direta de políticas públicas, como o mandado de injunção e a ação civil pública. Ao Supremo Tribunal Federal é confiado o poder de controlar a constitucionalidade de leis e arbitrar os conflitos políticos e sociais de maior envergadura.

O que é uma experiência constitucional bem-sucedida? Como medir o sucesso dessa empreitada? Deve observar a qualidade do texto constitucional? Deve se concentrar nas práticas institucionais apoiadas na constituição? Deve cotejar os resultados políticos concretos da constituição com as intenções do poder constituinte originário?  

Um balanço constitucional não diz respeito, claro, a tudo de positivo e negativo que, do ponto de vista social, político ou econômico, ocorreu no país durante o período, mas àquilo para o qual, de modo mais ou menos direto, a Constituição deu contribuição. É um exercício de grande dificuldade metodológica, com múltiplas abordagens possíveis: primeiro, pode tentar identificar relações de causalidade entre o texto e o mundo, ou seja, os efeitos ocorridos em virtude da Constituição (ou que inexistiriam na sua ausência); segundo, pode avaliar os graus de realização de seus objetivos de transformação social, os graus de “efetividade e concretização” no jargão jurídico; terceiro, pode olhar para o quanto a linguagem constitucional ganhou aderência na cultura de operadores do direito, dos agentes estatais e, claro, da esfera pública e sociedade civil.

Seja como for, abordagens devem partilhar um traço comum: tomar a constituição como um documento histórico, que deixa em aberto sua possibilidade de recriação constante. A identidade da constituição se dá no tempo. Todos os momentos constitucionais – criação, alteração, interpretação – são expressões de um poder (constituinte) que não se esgota na promulgação histórica do texto. A Constituição brasileira não “ficou pronta” em 5 de outubro de 1988. Examinar seu desenvolvimento não é como tentar fotografar uma bola em movimento: para além de instantâneas fixas no tempo, a trajetória só é visível por outra forma de registro. É no vídeo que uma experiência constitucional pode ser pensada como identidade e avaliada como estrutura. Observar os 30 anos da Constituição é assistir, sob um ângulo específico, ao filme dos últimos 30 anos no Brasil. Se olharmos para esse período, o que veremos?

Seu ponto de chegada continua a ser desalentador. O país da Constituição cidadã é hoje o que mais mata no mundo. São cerca de 64 mil homicídios por ano. A cada 100 assassinatos no mundo, 13 acontecem no Brasil, 71% deles contra a população negra. A sociedade que prometeu ser “fraterna, pluralista e sem preconceitos” mata um negro a cada 13 minutos, e é a que mais assassina, no mundo, LGBTs (um a cada 25 horas). O Brasil está em quinto lugar no ranking do feminicídio, quarto no de assassinatos de jornalistas, e é o primeiro colocado na execução de ambientalistas. Como se não bastasse, o país tem a polícia que mais mata e mais morre no mundo, a representação feminina no Congresso abaixo de 15%, e a terceira população carcerária do planeta, com cerca de 700 mil presos (60% de negros/pardos, 40% de presos provisórios).

Os indicadores econômicos não são menos angustiantes: apesar das promessas constitucionais de “existência digna conforme os ditames da justiça social” e de “redução das desigualdades regionais”, o país registra 40% da população de até 14 anos em situação de pobreza (embora seja o 9º maior PIB do mundo). Nas regiões Norte e Nordeste, esse percentual sobe para aproximadamente 55%. Nas outras regiões, cai para menos de 30%.

Ao mesmo tempo, na política governamental, a maior fragmentação partidária do mundo dá origem a um presidencialismo de coalizão que não consegue funcionar de modo não corrupto nem se blindar contra a influência do dinheiro. O Poder Judiciário atravessa hoje sua maior crise de legitimidade da história democrática. Pairam sobre ele as sombras do voluntarismo político (que beneficia ou prejudica seletivamente próceres da república), do arbítrio procedimental (que corrói a segurança jurídica e mina a autoridade das suas decisões) e do corporativismo (que justifica “auxílios” além do teto constitucional e a autoconcessão de reajustes salariais em cascata).

É evidente que essas imagens alarmantes não esgotam a identidade da Constituição nos últimos 30 anos. Seria injusto não recordar que, ao longo desse período, a democracia brasileira passou por drásticos pontos de tensão, que foram todos equacionados nos termos constitucionais, o que aponta na direção de um importante êxito da Constituição de 1988 em atuar como referencial de estabilidade das instituições e vetor de consolidação democrática. Por outro lado, uma rede de políticas públicas de redistribuição, reconhecimento e proteção foi responsável por notáveis avanços nas três últimas décadas, como a redução massiva do percentual de população vivendo em extrema pobreza (de 36% a 8%), a expressiva ampliação do acesso ao ensino em todos os níveis, e a universalização do direito à saúde na chave de um sistema gratuito espalhado por todo o país (SUS). Mas não há como negar a fragilidade e a insuficiência desses avanços, bem como a desolação trazida pelos indicadores citados. A Constituição está em crise, e esta é uma crise de identidade. Ironia ou não, uma crise dos 30 anos.

No mercado de balas de prata em que se transformou a política brasileira, não falta quem argumente pelo fim da Constituição de 1988, imaginando sua ruína fatal, nem quem sustente, no polo oposto, que todos os compromissos constitucionais se encontram hoje em perfeita harmonia institucional. Além de irreais, nenhuma dessas leituras faz justiça à Constituição de 1988. É dela que deve partir, afinal, a resposta madura à sua crise de identidade.


Conrado Hübner Mendes é doutor em Ciência Política pela USP e em Direito pela Universidade de Edimburgo, professor da Faculdade de Direito da USP e autor de Controle de constitucionalidade e democracia (Campus)


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