Notícias de outras ilhas: Júlia Studart

Notícias de outras ilhas: Júlia Studart
(Foto: Mila Langel van Erven)

 

Júlia Studart é professora e pesquisadora da Escola de Letras, UNIRIO. Publicou avião de alumínio (Quelônio, com Manoel Ricardo de Lima), O dançarino subtil – Gonçalo M. Tavares entre as esferas, O bairro e o reino (Caminho/Leya), Logomaquia (7 Letras), Nuno Ramos – ciranda da poesia (EdUERJ), Arquivo debilitado – o gesto de Evandro Affonso Ferreira (Dobra) e Will Eisner e Wittgenstein – se numa cidade suas formas de vida” (Lumme Editor).

Para a seção “Notícias de outras ilhas” – em que poetas, escritores e tradutores sugerem leituras para o período da quarentena –, indica poemas de João Cabral de Melo Neto, Gary Snyder e Francis PongeA curadoria é de Tarso de Melo. Leia os poemas e o comentário da poeta abaixo.

 

O percurso da pequena trinca é absolutamente heterogêneo, mas se compõe exatamente a partir das mínimas singularidades entre semelhanças e disparidades do pensamento de João Cabral, Gary Snyder e Francis Ponge. Poetas que, de longe, ou de muito perto, persigo devagar como se incorporasse aquela linha porosa de Cacaso: “trago comigo um retrato”. E esse é o lance que percebo como muito interessante: o jogo imenso e livre que cada um, a cada modo, faz com o uso das imagens, processos e projetos de impressão pelo negativo, subtração, contorno, retratação, reconfiguração, desenhos e diabruras da palavra para tocar as coisas da vida e do mundo. Perceber assim, nos três, esse primeiro sentido de uma “educação” da palavra que revira-se ao avesso e re-expõe-se noutros sentidos, noutras imagens, “analfabeta”, quando a paisagem reaparece escrita quase como uma neutralidade, uma espécie de terceira possibilidade, “recobrir inteiramente o mundo com palavras variadas”, de promessa, esperança e força política para o poema.

Gosto também da ideia de que são poetas de lugares e línguas diferentes (mesmo que os apresente aqui em português), logo, com sensibilidades e experiências distintas, mas sempre com os corpos em estado de presença plena até os limites mais insensatos de tudo, sem regras, sem a dimensão normativa e violenta da lei, quando se pode, a cada poema-pensamento-imagem, de algum modo, imaginar alguns caminhos nos quais a gente se esforce e lute com toda raiva, como crença, que seja, “vazios”, e que “estamos livres pra ir”.

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Os reinos do amarelo

João Cabral de Melo Neto

A terra lauta da Mata produz e exibe
um amarelo rico (se não o dos metais):
o amarelo do maracujá e os da manga,
o do oiti-da-praia, do caju e do cajá;
amarelo vegetal, alegre de sol livre,
beirando o estridente, de tão alegre,
e que o sol eleva de vegetal a mineral,
polindo-o, até um aceso metal de pele.
Só que fere a vista um amarelo outro,
e a fere embora baço (sol não o acende):
amarelo aquém do vegetal, e se animal,
de um animal cobre: pobre, podremente.

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Só que fere a vista um amarelo outro:
se animal, de homem: de corpo humano;
de corpo e vida; de tudo o que segrega
(sarro ou suor, bile íntima ou ranho),
ou sofre (o amarelo de sentir triste,
de ser analfabeto, de existir aguado):
amarelo que no homem dali se adiciona
o que há em ser pântano, ser-se fardo.
Embora comum ali, esse amarelo humano
ainda dá na vista (mais pelo prodígio):
pelo que tardam a secar, e ao sol dali,
tais poças de amarelo, de escarro vivo.

(A educação pela pedra, 1966)

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Informação de alta qualidade

Gary Snyder

Uma vida em busca disto
Como um verme na terra,
Como um falcão. Ligando cabos
Esboçando sistemas
Prevendo onde vai dar a conexão.
Lao-Tsé diz que
O melhor é esquecer o que se sabe.
É isso que quero:
Baixar todas as miras,
Remover, direto pro lugar
Onde elas serenam
De volta à mentalidade do meu tempo.
O mesmo velho circuito
Salvo algumas linhas codificadas por cores
Vazios
E estamos livres pra ir

(Re-habitar – ensaios e poemas, trad. Luci Collin; Azougue, 2005)

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O ciclo das estações

Francis Ponge

Cansadas de se haverem contraído por todo o inverno, as árvores, súbito, gabam-se de ser bobas. Não podem suportar mais: soltam suas palavras, uma onda, um vômito de verde. Empenham-se em chegar a uma foliação completa de palavras. Tanto faz! As coisas se arranjarão de qualquer modo! E, de fato, se arranjam! Nenhuma liberdade na foliação… Lançam, pelo menos o crêem, todo tipo de palavras; lançam ramos para neles dependurar ainda mais palavras: nossos troncos, pensam, aí estão para tudo assumir. Esforçam-se por se esconder, por se confundir umas com as outras. Acreditam poder dizer tudo, recobrir inteiramente o mundo com palavras variadas: não dizem mais que “as árvores”. Incapazes até mesmo de reter os pássaros que se vão, justamente quando se regozijavam de haver produzido tão estranhas flores. Sempre a mesma folha, sempre o mesmo modo de desdobramento, e o mesmo limite, sempre folhas simétricas a si mesmas, simetricamente dependuradas! Tente mais uma folha! – A mesma! Mais uma! A mesma! Nada, em suma, poderia detê-las, senão, de súbito, esta observação: “Não se sai das árvores por meio de árvores.” Um novo cansaço, uma nova reviravolta moral. “Deixemos isso tudo amarelecer, e cair. Venha o taciturno estado, o despojamento, o OUTONO.”

(O partido das coisas, trad. Adalberto Müller Jr. e Carlos Loria; Iluminuras, 2000)


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