Notícias de outras ilhas: André Luiz Pinto
O poeta e filósofo André Luiz Pinto (Foto: Divulgação)
André Luiz Pinto, 45, é poeta e filósofo, autor de Flor à margem, Ao léu, Terno novo, Migalha, entre outros. Para a seção “Notícias de outras ilhas” – em que poetas, escritores e tradutores sugerem leituras para o período da quarentena -, indica a leitura de poemas de Armando Freitas Filho, Paulo Ferraz e Tito Leite. Leia os excertos e o comentário do poeta abaixo. A seção tem curadoria de Tarso de Melo.
Os poemas, livros e filmes que hoje me guiam nessa ilha que virou meu lar são aqueles que me acordam para o real e apontam para uma saída. Escolhi três poemas, de três livros, de três poetas diferentes. A arte ajuda a cortar pela metade os efeitos do número cabalístico. O primeiro poema que escolhi, “Fim-de-século”, de Armando Freitas Filho, é ao mesmo tempo um alívio e um lamento: alívio, porque, nascido num país periférico, e em meio à guerra, o poeta brasileiro não provou do horror que foi o corrosivo século 20, e um lamento, por ‘não ter estado lá’, por só ter restado ao poeta as “ruínas abandonadas de um eterno domingo”. Em tempos de Covid-19, o isolamento é, guardadas as diferenças, marca do que devemos fazer se quisermos sobreviver a esse novo e eterno domingo…
Mas os tempos são outros, e num mundo globalizado, não há porto seguro, ilha propriamente dita. Resta o enfrentamento, não apenas contra os monstros do microscópio, mas contra o próprio estado: governantes inescrupulosos, tão perigosos quanto o vírus, como se o mal incluso dos microrganismos os retroalimentassem em sua condição de parasitas. O poema de Paulo Ferraz, “Para não esquecer, nº 6”, vem ao encontro dessa reflexão… Mas é preciso também de esperança e carnaval. Crer que o futuro há de nos perdoar, mesmo sabendo que, sem a nossa presença, golfinhos visitem os canais de Veneza. Como Tito Leite escreveu em “Licores de Olinda”, é preciso crer que somos cabíveis como uma baleia quando levita na Rua do Amparo. E eu ainda creio que levitar seja possível.
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Fim-de-século
Armando Freitas Filho
Heroína. Não conheci sua guerra
as lendas e os hinos frios
levados de boca em boca
na velocidade funil das ruas.
Não provei o doce-amargo
de sua conquista e posse
de delícia
de afrontar todos os laços
logo após a hora H do encontro
e ouvir sem armas
as árias estáticas e virtuais
de suas vitórias e aporias imóveis.
Nem vi sua bandeira pintada
no céu sem vento
podendo, chegada a paz,
perder as cores e morrer sem medo
rasgada como uma rosa clássica
que só se declina em latim
pétala a pétala.
Penso então no pensamento parado
de suas estátuas
que contemplam e completam
com a poesia do intervalo
as próprias ruínas abandonadas
num eterno domingo.
E apenas escrevo seu nome e atuação
neste livro de ocorrências, heroína.
Em De cor, Nova Fronteira, 1988
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Para não esquecer nº6
Paulo Ferraz
Para Manoel Fiel Filho
As portas para o inferno
se abrem em todo lugar,
umas estreitas como
um livro de bolso, outras
imensas como um palco,
dentro de casa, no adro
da matriz, no chão de
fábrica; o inferno é sempre o
mesmo, os que lá padecem
– se é que deram motivo –
pecaram contra o Estado.
Em Vícios de imanência, Selo Sebastião Grifo, 2018
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Licores de Olinda
Tito Leite
Não sei se sou
apolíneo
ou dionisíaco
gosto de Afrodite.
Acreditem
– aqui todos
os deuses cabem.
As ladeiras têm silhuetas
de artes plásticas –
entre letras e artesanatos
o amor é bento.
Em Olinda tudo calha
– uma baleia levita
na Rua do Amparo.
Em Digitais do caos, Selo Edith, 2016.