Verde

Verde

 

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de novembro de 2021 é “a arte e a educação como meios para combater o racismo”


 

No fundo sei…  o que me tem empurrado para frente foi ter me imaginado Deus. E ser este pequeno círculo que vivo, a grandiosa esfera do desconhecido. Acredito-me tendo poderes do Deus, teço os fios; faço-os gesticularem.

 

E viveram felizes para sempre. Assim terminam as histórias infantis em romântico enlace, convencendo a nós crianças de que o destino é um velho sábio e generoso, e que, mesmo com monstros a enfrentar, séculos a passar, a justiça se dá fatalmente, distanciando os bons dos maus, e dando, em geral, ao homem guerreiro e honesto, as princesas por recompensa.

Mas as histórias infantis da antiguidade eram muito diferentes. Falavam dos grandes feitos dos deuses e eram bem mais confusas. As complicadas árvores genealógicas se entrecruzavam, misturavam sexos, idades, seres humanos com deuses e com animais, pais com filhos, as forças da natureza se personificavam ou eram personificadas. Não se sabia quem era a recompensa e nem mesmo qual ação seria a realmente justa a ser celebrada. Nesta aparente orgia nada tinha a ser protestado porque se tratava de inquestionáveis deuses. E deus é sempre bom.

Embora tendo ouvido aquelas histórias infantis com o esperado final feliz, Nelson teve um destino muito pouco provável. Talvez se tivesse sido uma criança da Grécia antiga, inebriado por Homero, poderíamos explicar sua natureza, mas não…

Nelson na infância era uma criança normal. Era descontraído, alegre. Um dia em uma daquelas brigas escolares frequentes, foi repentinamente xingado de negro por um dos meninos. Surpreendeu-se! Mas nada fez, ficou atônito. Em casa, no jantar, perguntou à sua mãe se o achava um negro. E a mãe calmamente respondeu: “Claro Nelson, somos negros com muito orgulho”. E brincou cantarolando: “Black is beautiful, você não acha meu filho!”. E continuou a servir os pratos como de costume. A mãe de Nelson era jovem, bonita, inteligente. Divorciada com dois filhos e tinha estudado fora do Brasil. Teve carreira acadêmica e trabalhava em uma ONG com atividades pelo mundo inteiro.

E então, Nelsinho, com seus seis anos de idade à época, foi, naquela noite, olhar-se cuidadosamente no espelho tentando entender o que a mãe e seu amigo diziam. Não via nada. Para ele, sua cor era verde como de todos que amava à sua volta.

Não falou nada a ninguém e foi dormir entre intrigado e preocupado. Talvez estivesse muito doente, ou talvez, na sua fértil imaginação infantil, não fosse um ser humano, pensava. E, no dia seguinte, foi para escola sentindo muita raiva daquele menino que o chamara fervorosamente de negro. Quando lá chegou, levou um susto. O menino e sua turma, quatro outros colegas, estavam lá o encarando meio sarcasticamente. Mas Nelson quase não os reconheceu. Todos aqueles meninos tornaram-se brancos aos seus olhos. Nelson saiu correndo em desespero, nunca tinha visto um ser humano que não fosse verde.

E foi assim que a vida de Nelson foi progressivamente se colorindo. Toda a injustiça ou maldade que Nelson via alguém praticar, fazia com que aquela pessoa “ruim” mudasse de cor. Não era mais verde como ele. Aí surgiram brancos, negros, marrons, amarelos. Mas, Nelson buscava cercar-se só de pessoas verdes, como via a si, ao seu irmão, à sua mãe, e também muitas pessoas por quem se apaixonou. Embora conhecedor destes seus poderes, Nelson nunca revelou nada disso a ninguém.

Já maduro, independente da sua família, conheceu um rapaz muito inteligente. Assim como Nelson, era também professor da universidade. Tinham uma cumplicidade rara, trocavam livros, opiniões sobre o mundo, tinham vários projetos em comum. Nunca tinha conhecido alguém assim. Apaixonaram-se completamente. Foi em um almoço que ofereceu em sua casa, para que seu irmão e sua mãe conhecessem seu amigo, é que novamente Nelson foi surpreendido pelos seus poderes divinos. Ao longo do almoço, à medida que se evidenciava a proximidade dos dois amigos, Nelson foi vendo que sua família já não era mais verde como ele. E levantando-se subitamente, gritou: “vão embora, negros!”

Depois deste dia, Nelson não viu mais ninguém verde. Já não era mais o super-homem, o deus, que sabia discernir o bom do mau. Não era mais o titereiro a brincar com os fios e selecionar quem iria fazer parte do seu planeta verde. E constatou enfim, a beleza da sua negritude.

(Serão verdes os deuses?)

Claudia Barbosa, 56, é doutora em Filosofia (UFRJ), criadora e
integrante do coletivo Atelier Casa4 de Arte e Filosofia, na Vila do
largo, no Rio de Janeiro.  Em 2021, o conto “Verde” foi base de um
experimento no Atelier Casa4 de Arte e Filosofia, e transmutou-se
em escrita audiovisual.

 

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