Ser mulher, fazer ciência

Ser mulher, fazer ciência
(Arte Revista CULT)

 

Por Monique Malcher

Nenhum começo da minha trajetória seria tão honesto quanto falar dos rios da Amazônia que minha avó materna percorreu para levar os filhos para Santarém, cidade do interior do Pará. Dentro das tantas vontades da minha avó estava ver as filhas formadas e com mais oportunidades. Pelos mesmos rios que ela percorreu com esse sonho no coração, minha mãe e algumas das irmãs também voltaram para lecionar, no geral para crianças. Cresci com a imagem feminina forte das mulheres professoras, e foi na educação que me agarrei para sobreviver em um ambiente familiar de violência e abuso psicológico do meu pai.

A literatura sempre foi uma forma de escapar das dores, não demorou muito já era uma adolescente escritora, e assim cursei jornalismo. Eu e minha mãe já não tínhamos a presença do homem que tentou nos matar e matar nossos sonhos, todos pautados na educação. Decidi que queria seguir escrevendo e pesquisando ficção, mas também lecionar. Mais uma vez eu sentia o caminho do rio e das mulheres da minha família. A educação tinha nos dado uma história diferente e eu queria muito que outras mulheres pudessem sentir e abocanhar essa experiência.

Depois de experiências exploratórias no mercado de comunicação, percebi que queria estar em sala de aula, que tinha escondido essa vontade por muito tempo. Era o momento. Consegui ingressar no mestrado de Antropologia da Universidade Federal do Pará em Belém. Inicialmente foi um desafio enorme conseguir passar por uma seleção de pós-graduação, primeiro porque acreditava que aquele espaço não era feito para uma mulher como eu, que era um espaço de homens. E antes dessa experiência tinha conseguido ser aceita no mestrado de Artes da mesma universidade, mas perdi minha vaga para um artista que me assediou na sala de espera da entrevista final, mas ainda bem que tentei de novo.

Estar em uma capital me apavorava o tempo todo, era um medo constante sair de casa pelo nível de violência que a cidade oferecia, mas a gente se acostuma a ter que enfrentar qualquer coisa. Consegui minha primeira bolsa de estudos no mestrado, o que foi uma experiência fora do comum para mim, ter apoio para o básico como pegar ônibus. Era a primeira vez em muito tempo, depois de viver de favor na casa de outras pessoas, passar necessidade e outras coisas que até hoje me doem profundamente, que consegui respirar. A bolsa era uma possibilidade real de fazer ciência, um valor que para governos autoritários pode parecer um absurdo, mas não é, nem um pouco. Fazer ciência no Brasil tem sido um grande desafio, ser mulher no Brasil tem sido um desafio ainda maior. Pesquisar feminismo então, nem preciso falar.

Cheguei ao doutorado Interdisciplinar de Ciências Humanas na Universidade Federal de Santa Catarina no ano passado. O mesmo medo que tinha durante o mestrado me persegue no doutorado. A fragilidade de ser bolsista, principalmente quando você está tão longe de casa e a sua casa também está em colapso. Tento sempre me manter intacta à dor de pensar em todos os processos que nós pesquisadoras temos que enfrentar para estar nesse ambiente e produzir algo incrível que dê retorno para a sociedade, e no meu caso, para a vida das mulheres.

Quando me mandam notícias sobre a ciência no Brasil, sempre vejo o quanto a educação não importa para o plano necropolítico e nefasto de alguns governantes. Não é interessante para eles que existam mais mulheres como minha avó, minhas tias e minha mãe. Dia desses conversando ao telefone com mainha ela disse que o momento mais lindo do dia era quando recebia as crianças na porta do colégio. E como estamos recebendo nossas crianças? Nós mulheres acreditamos na educação, mas tem dias que o coração dói demais, mas unidas agimos, isso é o que mantém nosso projeto, que se ancora na consciência e na transformação, vivo.

Monique Malcher, 30, é escritora e cursa doutorado na UFSC, pesquisa feminismo, quadrinhos e literatura

 

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