Ser minoria; número dois, minoria financeira

Ser minoria; número dois, minoria financeira
(Arte Revista CULT)

 

Por Euzébio José dos Santos Jr.

A minha vida inteira estudei em escola pública. Nunca achei que isso fosse um desabono, muito pelo contrário, era infinitamente feliz pelo fato de estudar. Meu pai estudara até a terceira série e minha mãe até a quinta, pois ambos precisavam trabalhar para ajudar seus pais nas despesas domésticas. Minha mãe trabalhou “em casa de família” como se diz na minha cidade quando alguém é empregada doméstica, e meu pai foi faz-tudo na casa de uma abastada família turca que vivia no bairro mais alto, e mais caro.

O contato dos meus pais com essas famílias fez com que eles desejassem uma vida menos doída para seu filho e, por isso, a minha escola era a coisa mais importante da casa. Fui para a pré-escola da cidade, onde todos, fossem ricos ou pobres, iam por ser a única opção na cidade; no Ensino Fundamental alguns colegas foram para escolas particulares, mas apenas aqueles muito ricos e eu, assim como a maioria dos meus amigos, sabia que aquelas escolas eram apenas uma forma dispendiosa dos ricos demonstrarem sua superioridade, necessidade que eu não tinha. Já nas férias, entre o penúltimo e o último ano antes do Ensino Médio, eu conheci um menino de São Paulo que era absolutamente diferente de todos os amigos que eu já tivera. Ele falava do quanto era importante ter um bom estudo para se tornar uma pessoa mais consciente, para participar de forma mais relevante do mundo, para não ser enganado facilmente e, como um prêmio por tanto esforço intelectual, ter a possibilidade de estudar na USP.

Quando referia-se à universidade ele não falava “uma boa universidade” e nem “uma universidade pública”, ele apenas dizia “a USP”. E eu, vendo seus olhos brilharem ao citar esse nome, imaginava no mínimo um castelo feito de marfim, cercado de macieiras de ouro e recheado de deuses, pois apenas deuses poderiam estudar ali.

Após esse contato com o sonho tão palpável do meu amigo, eu decidi que também queria estudar nesse paraíso, e para isso precisaria me preparar muito, mas não sabia como. Meu amigo me apresentou a outros amigos que estudavam numa escola particular de uma cidade vizinha e eu, que me achava o mais inteligente dos seres humanos, vi que não sabia nem um terço do que os irmãos mais novos desses meus amigos sabiam e relacionei essa diferença intelectual à diferença na qualidade de nossas escolas, portanto precisaria estudar nessa escola melhor.

Matei aula no dia posterior à essa decisão, peguei um ônibus e fui à tão sonhada escola, meu meio de transporte até a USP. Chegando lá, conversei com um coordenador que me mostrou o colégio, que tinha, ao meu ver, dez vezes o tamanho da minha pobre escola; seus cursos, as viagens que os alunos faziam, as festas, eventos culturais e tudo mais que a escola promovia frequentemente era bem diferente do meu colégio onde apenas havia um concurso de poesia promovido todos os anos, que eu sempre vencia com algum poema que meu pai fazia em dez minutos enquanto consertava um carro. Após todo esse passeio, voltei à sala do coordenador para ele me dizer quanto esse sonho custaria e, acreditem, era muito, mas muito caro. Após ver minha reação ao ouvir o valor, o coordenador me disse que haveria uma prova para entregar uma bolsa para os alunos que tinham interesse em estudar no colégio e não podiam arcar com os gastos. Eu vi naquela oportunidade a minha salvação e pedi a ele que fizesse a minha inscrição ali mesmo, e ele assentiu.

Fiz a prova uma semana após conhecer o colégio e vi que tinha ficado apenas alguns lugares à frente dos alunos que tinham fumado maconha antes de fazer a prova, mas mesmo assim voltei à sala do coordenador para saber meu resultado. Chegando lá, soube que o coordenador do colégio estava viajando mas o diretor  me receberia, e em poucos segundos eu estava sentado em frente a um  homem de camisa xadrez e uns óculos enormes que me olhou como se me conhecesse, se levantou, apertou minha mão e falou um “oi” como se tivesse conversado comigo há dez minutos. Respondi ao caloroso cumprimento daquele homem corpulento da melhor forma que pude, pedi a ele que me dissesse se eu conseguira a bolsa de estudos. Ele olhou no computador, rolou a tela mais para baixo, um pouco mais para baixo e ainda uma terceira vez até achar meu nome. Quando achou, me olhou meio desapontado e me disse que eu não conseguira a bolsa integral. Eu então vi o sonho de estudar na USP esvaziar-se como um balão a gás, sentimento que o homem também percebeu ao me olhar. Ele me examinou alguns segundos por trás de seus óculos grossos e me perguntou “você mora em Cunha?”, eu respondi que sim, e ele perguntou se eu estudava na escola da cidade, ao que eu também assenti com cabeça e, finalmente ele perguntou: “foi você que ganhou aquele concurso de poesia da sua escola na semana passada?” Então eu fiquei realmente surpreso. Respondi a pergunta do senhor sem entender o que estava acontecendo. Ele sorriu e me disse que estivera na minha cidade durante a semana pois estava de folga e ficou curioso sobre uma aglomeração de pessoas na Câmara Municipal da Cidade. Chegando lá, viu que alguns prêmios estavam sendo entregues a estudantes e me viu receber o prêmio de poesia de uma professora meio careca.

Após me explicar o porquê de ele ter me tratado como se já me conhecesse, me disse finalmente: “Não conta para ninguém, mas eu vou dar a bolsa para o primeiro colocado e para você também”.

Euzébio José dos Santos Jr. é professor na Solomon Aulas Particulares, em São Paulo – SP

 

(7) Comentários

  1. Belíssimo texto! Me motivou, inspirou a nunca desistir dos meus objetivos escolares com os meus filhos…

  2. Que história linda sobre esperança e superação. É de histórias inspiradoras como a do Euzébio que os jovens precisam hoje. “Pé” no chão, perseverança e fé em Deus, em si e nas pessoas. Vale a pena sonhar e lutar com integridade pela realização ddos seus sonhos.

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