Sarjeta e farol

Sarjeta e farol
(Reprodução)

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de abril de 2020 é “quarentena”


Pensar como estão as travestis moradoras de favela nesse momento de Covid-19 se faz um movimento de privilegiados ou de semelhantes. No meu caso, sou uma semelhante privilegiada.

Primeiramente sou semelhante porque sou uma pessoa trans não binária, nascida e criada na Favela do Simioni, uma favela comandada pelo Primeiro Comando da Capital (PCC). Por tal vivência e cultura, me autodenomino como artista periférica. Poduzi sobre e na periferia por 18 anos. Carrego em meu histórico uma bagagem de sete anos de montação drag, dentro e fora do meio acadêmico, nas cidades de Brasília (DF), Ribeirão Preto (SP), São Paulo (SP) e Salvador (BA) – onde tive a oportunidade de performar e desenvolver a Srta. Hara, a drag queen/persona que carreguei em minhas apresentações antes da minha transição de gênero. Construída em orientação com a professora mestra Cyntia Carla, da UnB, a Srta. Hara problematiza performaticamente questões relacionadas ao corpo favelado e seus tabus, principalmente nas relações sociais. Costumo pensar que nosso corpo é um resultado decolonial e precisamos lidar diariamente com todas essas violências sociais, principalmente em tentativas de vida antirracista e anticolonial. E sobre a Covid-19? A questão dessa doença, que hoje se tornou uma pandemia mundial, trans[formando] o mundo e gerando novos olhares para o sistemas econômico, social e político, é sobre a trans-missão, a hiper velocidade e facilidade da transmissão no contato. Esse alarde se dá pela interferência na questão social, a transmissão – e sobre trans[missão] nós, pessoas trans, já entendemos nossa estigma[missão].

Segundo, sou privilegiada, pois, sem dúvida, reflito sobre isso e aqui posso desempenhar meu papel de pesquisadora em arte e gênero. Sou mestranda no Programa de Artes Cênicas da ECA-USP e, formalizar essas reflexões no exato momento que elas ocorrem, com bagagem e “cabedal referencial”, me suscita reflexão altruísta e emancipadora, tecnologias que são distanciadas dos corpos favelados e transgêneres. No entanto, só realizo tal função porque cedi ao cistema (sistema cisgênero branco europeu) e estou cursando uma Pós-Graduação em uma universidade. E isso é privilégio porque corpos “iguais” ao meu não ocupam universidades, não ocupam listas de presença de aulas de Filosofia, de estruturalismo. Esses corpos não são docentes nas universidades públicas e nem seus livros são citados em aula. Existe uma professora travestigênere doutora em Artes Cênicas no Brasil, e ela se chama Dodi Leal. Isso não é motivo de orgulho, mas sim de tristeza. Não pela professora Dodi, porque ela é boca de tracajara! Mas porque obviamente se essas manas não estão ocupando esses lugares, se essas manas não trabalham em universidades ou padarias, drogarias, escolas infantis, restaurantes, lotéricas, bancos, academias… onde elas vão trabalhar? E se vocês querem um depoimento sobre a Covid-19 nas favelas do Brasil, eu lhe/me digo: chegou como uma questão econômica e sempre será. Nós temos medo de conhecer mais profundamente esse “lance de necropolítica”, nós já vivemos contando moedas e não trabalhar nunca foi opção. Em suma, somos autônomas – já vi dois relatos de demissão entre as que têm trabalho registrado. Parece melhor ir morrendo trabalhando do que morrer sem trabalhar. Esse nome “coronavírus” na favela – eu diria talvez Brasil – não chegou pelas questões de saúde, chegou pelo cancelamento ou não dos dias de trabalho. Chegou pela falta de cliente, pela “dispensa temporária” sem previsão de contratação, pelo aviso de quem tem que ir trabalhar antes mesmo do assunto “isolamento social”; chegou pela mudança diária da entrada de dinheiro. Digo diária porque o mais comum entre as corpas trans é o pagamento por dia. Sejam as artistas, professoras ou prostitutas que somos, o que observo nesses anos é que a forma diarista de oferecer serviço é a mais comum entre nós, e fomos nós que imediatamente ao dia seguinte da confirmação do primeiro caso de Covid-19 no Brasil sofremos economicamente, nós, todos os diaristas, e as bilionárias empresas que faturam a cada segundo.

Então respondo: o que vejo acontecendo com as nossas é que precisamos ignorar o isolamento social para correr para as ruas, para a realidade ainda mais violenta da prostituição – com ainda menos clientes, segurança de trabalho e respeito. No caso de uma relação sexual, a transmissão da Covid-19 é quase certa, ou seja, trabalhar/existir é se expor. Mas também não é assim com o vírus do HIV, e a gente se esquiva diariamente?

Sabe o que vejo alegremente com as nossas, também? As muitas que são grandes artistas, famosas ou não, estão reinventando as tecnologias virtuais e trabalhando na segurança de suas casas. Destaca-se o festival Marsha! Entra na Sala, primeiro festival TLGT online produzido totalmente por pessoas trans. É um evento que gerará akuê para as pessoas trans artistas nesse momento de isolamento onde todos os nossos “jobs” foram cancelados com zero garantias. Sabe o que eu vejo também? Vejo sarjeta e vejo farol. Vejo artistas, professoras de escolas privadas, cabeleireiras e filósofas voltando à prostituição. E não como uma escolha, mas por sobrevivência. Será que temos tempo para pensar em lavar as mãos em nossas casas onde muitas vezes falta água? Na minha, toda noite, sempre. Isolamento social na favela tem a ver com “abrigar” em média oito a nove pessoas com idades de 0 a 89 anos, em 30 ou 50 metros quadrados. Quase sempre é essa a realidade de todas as casas das diversas favelas do Brasil. Favelas essas que são diversas, de norte a sul, vale a pena destacar, mas menos em uma questão: a aglomeração. A favela precisa de um olhar urgente desse Estado que “afana em um contrato social” nossas liberdades e nos dá em troca uma estrutura obviamente falida e fracassada que não consegue se manter e nos manter dentro das suas próprias estruturas. Precisamos de uma renda mínima mundial!

 

Manfrin Manfrin é formada em Artes Cênicas e Interpretação Teatral pela UnB com especialização em Direção Teatral na UFBA, em Salvador. Atualmente, defende sua pesquisa de mestrado no PPGAC/ ECA /USP. Desde 2018, aprimora seu estudo sobre a interpretação cênica na Escola de Arte Dramática (EAD- USP).

 

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