Reflexões de uma ex-professora ou futura desempregada

Reflexões de uma ex-professora ou futura desempregada
(Arte Revista CULT)

 

Por Daniele Gomes

Ontem foi Dia do Trabalhador e hoje, estou cansada de um dia de trabalho. No entanto, ainda tenho que ter energia para ler o livro A condição humana (2009) da filósofa Hannah Arendt, pois, além de seu pensamento me potencializar, seus apontamentos podem colaborar para a elaboração de minha tese de doutorado.

Nessa obra, a pensadora apresenta o conceito que intitula o livro de maneira não é essencializada ou mesmo vinculada ao conceito de “natureza humana”, mas volta-se para as circunstâncias de vida encontradas pela humanidade, na correlação entre a natureza, as produções humanas, e os sujeitos no e com o mundo.

A forma como são estabelecidas essas relações, Arendt chama de vita activa. Esta, por sua vez envolve a potência de agenciamento humano, afastando-se da vita contemplativa, sendo assim, atuação. Posto isso, ela apresenta três tipos de atividades como características da existência, fundamentais da condição humana: o labor, o trabalho e a ação. Estas são as condições mediante as quais a vida foi dada à humanidade na Terra.

O labor refere-se aos processos biológicos de manutenção e execução do ciclo vital da espécie. O trabalho diz respeito à criação de artefatos que se instauram na esfera do uso, ou seja, a fabricação de coisas que promovem o artificialismo da mundanidade. Vinculado ao gesto de consumir, não resulta em um produto final, mas na satisfação das necessidades imediatas.

Já a ação é a atuação que precisa da interação, da presença de outros. É a atividade política por excelência, condição humana de pluralidade. Essa categoria tem como uma de suas interfaces a igualdade, por um lado, haja vista que todos são humanos e por outro, a diferença, isto porque cada ser humano é único, particular, diverso daqueles que existiram, existem e virão a existir. Por meio do discurso e da ação é que os indivíduos se distinguem e se inserem no mundo, não apenas como seres existentes, mas como humano, como sujeito que se revela a outros humanos, isto é, que se alteriza. É nesse contexto que a política, enquanto exposição do sujeito no âmbito público, se constitui enquanto um dos gestos da ação.

A educação é outro modo possível de externalização da ação, haja vista que “revela, aos outros, cada um, e revela/abre o mundo, é ação humana que decorre, e reifica, a esfera pública” (GOMES; GONÇALVES, 2015, p .29) em sua interface de materialização de agenciamentos e discursos. E, educar se faz através do discurso e do modo como o discurso revela perante os outros o sujeito que o profere. Educar também exige e estabelece uma certa pluralidade – mostrando a diferença entre as pessoas presentes, tanto como evidenciando as semelhanças que subjazem à compreensão. Educar constitui um espaço de aparição; é um espaço controlado de aparição, é um espaço encenado em que cada um desempenha um papel, sendo um processo irrepetível, e cujos resultados são imprevisíveis. (GOMES; GONÇALVES, 2015, p .29)

Esse teor de imprevisibilidade desloca a ideia de que o trabalho da educação deve ser produtivo, seja no que se refere à teleologia da cidadania, quanto no discurso tecnicista da necessidade de mão de obra. E, nesse sentido refletir sobre a minha (atu)ação, enquanto professora de Filosofia do Ensino Médio da Rede Estadual do Rio de Janeiro, implica em problematizar essa noção de produtividade, que dialoga com a lógica sistêmica de consumo, e, contrapropor e vigorar o caráter improdutivo que a educação pode ter.

Se os processos educativos forem compreendidos enquanto ação, e não como fabricação, ou seja, que não se centra em atividades produtivas e lucrativas, mas na improdutividade, na ociosidade, na relevância dos processos, e não no que pode ser previsto, mensurado, transformado em número, eles podem ser gestos de ressignificação e de resistência.

Na medida em que são instigados os encontros alteritários, a educação torna-se uma “forma de proteger o mundo e de o pôr à disposição dos que têm a capacidade de o reinventar” (GOMES; GONÇALVES, 2015, p.24), sendo assim, um processo de humanização e construção do que é partilhado e comum. Sejam valores, histórias, identidades, saberes perpassados pela renovação e a novidade, em múltiplos espaços e tempos… Enfim, uma infinidade de formas de potencialização. Portanto, a educação não tem que servir ou produzir nada a ninguém e não se apresenta apenas vinculada às instituições, mas faz-se enquanto um trabalho, que em diálogo com Hannah Arendt (2009), é pensado como ação humana.

Talvez, por criar estratégias que escape aos ditames institucionalizados, verticalizados e impositivos que, cada vez mais, a Educação vem sendo atacada e desvalorizada e, com ela a Filosofia, enquanto experiência de questionamento, inerentemente humana, que desafia e cria outros caminhos possíveis e pensáveis.

Por enquanto, continuarei agindo e mantendo a compromisso de pensar e experienciar, “a educação como prática de liberdade” e de emancipação. Afinal, há muito trabalho pela frente.

Daniele Gomes é professora de Filosofia da Rede Estadual do Rio de Janeiro

 

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