Primeiras testemunhas

Primeiras testemunhas

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de março de 2021 é “luto”


O luto tem diferentes cores nas diversas culturas espalhadas pelo globo, assim como a morte e o pós vida se expandem em centenas de explicações e esperanças pulsantes pelos corações dos enlutados. Em épocas de pandemias – porque vale lembrar que existiram outras, soterradas pelo peso da história assim como as suas vítimas – essa palavra se torna um alarde obsceno gritado pelas janelas e pranteada pelas ruas. Mas mais do que o período de respeito por cada alma que se esvai, fica também certa tristeza por uma sociedade, um estilo de vida e uma inocência que perece.

É bem sabido e disseminado em jogos de palavras ou posts nas redes sociais que a tragédia é a maior fonte de verdade das relações humanas. O instinto se sobrepõe a moralidades que acreditávamos nos constituir como gotas de sangue, revelando facetas que podemos adorar ou repudiar. A decência, a empatia e a amizade titubeiam. Quando o inimigo é uma partícula invisível indiferente a choros e argumentos, é mais comum ver as pessoas se voltando umas contra as outras, perseguindo fatos e se amotinando contra ideias como um cão que corre atrás da cauda sem saber que, ao alcançá-la, tudo o que sentirá será a dor do contato dos próprios dentes.

Mas não é apenas em indivíduos separados que nossas falhas e virtudes se revelam, mas em agrupamentos sociais como um tudo, expondo as macuas históricas deixadas ao longo da construção dos países, preconceitos e conflitos escondidos em nome de uma estabilidade que se perde.

Em 1985, Svetlana Alexievich publicava sua coletânea de entrevistas transformadas em contos sobre a Segunda Guerra Mundial, o trágico livro “As últimas testemunhas”, em que o luto de crianças e a perda e a retomada da esperança vociferam em cada página. Nós também somos últimas testemunhas, mas ainda não sabemos do quê, exatamente. Podemos ter uma ideia, mas afirmar com certeza o que perdemos e o que ganhamos será um trabalho mais bem executado pelos olhos indiferentes das gerações futuras. Por enquanto, enterramos nossos mortos e vemos o desabamento desse algo inconcreto, mas cuja queda sacode nossos pés.

A história repete seus ciclos, cada um deles camuflados à sua maneira para que não sejam reconhecidos pelos olhos dos sobreviventes anteriores, talvez como uma maneira de nos mostrar que não somos tão superiores às gerações que desprezamos por sua incoerência e brutalidade. E é nessa destruição e reconstrução que perpetuamos nossas mudanças, abraçadas a essa palavra de quatro letras, sentida com a mesma amargura século ante século, que tem o poder de alterar o DNA das sociedades.

Entre o luto inevitável e a construção do novo edifício político-social que abrirá o século, seremos também as primeiras testemunhas, e espero que de algo menos frágil do que os alicerces que nos sustentaram até agora.

 

Giovanna Barsotti, 22, mora em São Paulo.
É formada em Letras com Habilitação em
Tradução e gosta de passar as madrugadas
lendo e escrevendo. Tem um blog no Medium
chamado Affair Literário, onde escreve sobre literatura

 

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