Pelo direito à minha ignorância, talquei?

Pelo direito à minha ignorância, talquei?
(Reprodução)

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de junho de 2020 é “quarentena”


A pandemia causada pelo coronavírus apequenou-se, no Brasil, diante do sempre premente e presente risco da volta de um regime autoritário, ainda que não necessariamente militar, acompanhado pelos discursos de ódio e sempre cheios de maledicências da autoridade máxima do país e de sua prole.

E nem se fale dos seus apoiadores que, como uma enxurrada de dejetos, abalam as bases democráticas, espalham fake news, agridem verbal ou fisicamente quem pensa de forma contrária, atiçam o furor das ruas, deturpam fatos, fazem apologia à volta da ditadura militar, além de imitarem (de forma bem fiel, inclusive) atos nazi-fascistas. E tudo isso calcados no direito à liberdade de expressão.

Para estes, a liberdade de expressão lhes conferiria um direito ilimitado de expor seus pontos de vista, ainda que através de mentiras, calúnias e difamações de quem não segue a ideologia bolsonarista. Ignoram, de forma proposital ou não, que há limites no direito de liberdade de expressão.

Para seus fervorosos seguidores, a história também deve ser contada do ponto de vista deles, ainda que se ignorem ou se contrariem fatos e documentos históricos e até mesmo dados científicos. Nada disso importa para eles, a não ser a possibilidade de defenderem o seu ponto de vista: não houve ditadura, os militares são a salvação da lavoura, a cloroquina é o remédio milagroso contra a Covid-19, o Poder Judiciário e a “grande mídia” perseguem o seu “Messias” (que não faz milagres), a comunidade LGBTI+ quer implantar uma ditadura, o nazismo era de esquerda e que a Terra é plana.

Só consigo imaginá-los como aqueles alunos do “fundão”, que, não se conformando com o “zero” da prova, querem agora a vingança contra seus professores. Bradam: “a nossa hora chegou”.

Pensar dói. Ler cansa. Pesquisar dá trabalho.

A ascensão da família Bolsonaro culminou na baixeza das discussões políticas. Tenta-se atribuir alguma feição de legitimidade às fake news para se expurgar um dos maiores inimigos do novo governo: o conhecimento e a grande mídia, afinal, conhecimento aliado à informação é poder.

Se esquecem do básico: notícias falsas não são notícias.

Notícias informam fatos verídicos. Afora isso, são mentiras.

Criou-se uma mídia desqualificada profissionalmente e deturpada moralmente. Visa-se apenas lucrar e apoiar aqueles que financiaram a campanha presidencial. Como sempre, o dinheiro está por trás de todo o poder opressor. Agora, cobram a conta.

Os seguidores da filosofia bolsonarista agora tratam de temas sensíveis do ponto de vista constitucional e o diminuem, como se falassem do pênalti não dado pelo juiz de futebol. Questões debatidas por importantes doutrinadores passam a ter uma solução simples na língua dos “experts” minions. Opinam como se tivessem alguma propriedade sobre o assunto. Ignoram opiniões de especialistas e, quando criticados, trazem “especialistas” da mesma laia deles: que não têm o menor pudor em mentir e adulterar fatos. A política virou papo de boçais que enchem a cara, falam de boca cheia, arrotam boçalidades, não querem saber se estão certos ou errados, apenas ver seu time ganhar a partida a qualquer custo, ainda que por uma “ajudinha” do árbitro. Para eles, não importam os meios para se alcançar os fins.

Os alunos “nota baixa” tornaram-se, do dia para a noite e sem o menor esforço, os novos “cultos” do momento, enquanto os “nerds” são, agora, os párias da sociedade. “Vão para Cuba, esquerdistas”, bradam os novos “formadores” de opinião. Lutam por uma nova espécie de direito: o de ser ignorante, num mundo novo, no qual a globalização e o senso de justiça social cresce e os amedronta. Com medo desse mundo novo, desejam manter o velho, em que a ignorância e o ódio dominam. Um mundo no qual não há mais o “politicamente correto”, nem melhorias na vida social, mas com a visão deles: preconceituosa, racista, classista e sexista.

Lutam por um mundo já condenado ao fracasso, afundado na corrupção e no retrocesso social. Aonde os que pensam diferente devem ser enjeitados. Aonde possam continuar passando a mão na bunda das mulheres e se sentido os donos sobre suas vidas. Aonde o negro continua sendo sub-julgado e visto apenas como uma ferramenta de produção descartável. Aonde possam xingar de “viadinho” ou de “sapatão” o rapaz ou a moça que passa do outro lado da rua. Demandam pelo direito à ignorância, à desinformação, à terem sua própria mídia: parcial, manipulável e sem qualquer compromisso com a ética e a verdade.

Não me surpreenderia se os novos “intelectuais” do momento reescrevessem os livros de história e agora pregassem que não houve escravidão, mas sim serviço braçal voluntário dos negros e que a extinção dos dinossauros e o surgimento do nazismo foi um ato da extrema-esquerda.

No Brasil de hoje, somos George Taylor, que acorda de sua hibernação e se depara com um mundo em que os seres humanos viraram verdadeiros ignorantes.

 

Guilherme Dias Trindade é advogado

 

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