Outra vez Natal
Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de dezembro de 2021 é “angústia”
Peço licença ao escritor Luiz Ruffato para transcrever o trecho final de sua crônica Raro como flores azuis, publicada em seu mais recente livro, Ninguém em casa, que tenho em mãos, autografado, e ao qual teço os mais sinceros elogios. O mencionado trecho narra uma história contada por Carlos Alberto Libânio Christo, mais conhecido como Frei Beto, e foi reproduzido pelo autor após discorrer sobre o renomado teólogo.
“Eu estava no sinal vermelho em São Paulo, e um garoto chegou. Sempre carrego balas comigo, justamente para não dar dinheiro. Ele se aproximou: ‘Moço, me dá um dinheiro? Eu falei que não tinha. Eu estava com um último pacote de dropes, dei e passei a mão na cabeça dele. Então, um outro garoto se aproximou. Falei que não tinha dinheiro e a última bala eu tinha dado para o colega dele. E ele respondeu: “Não moço, eu não quero bala, não quero dinheiro. Eu quero que você passe a mão na minha cabeça’. Aí, só de lembrar desse episódio, tenho vontade de chorar de novo”.
O relato me fez parar a leitura nesse ponto, sem forças para continuar devorando as páginas, o que vinha fazendo por quase duas horas. Um sentimento de angústia tomou meu peito acelerado pelos batimentos de um coração partido.
Imersa nas imagens natalinas que me preenchem nesta época do ano, criei um cenário onde, além das luzes do semáforo, sobressaíam as luzes de Natal da maior cidade do país. Ali, vi refletidos os olhos de todas as crianças apartadas da riqueza que desfila em carros blindados e coloca-as como seres microscópicos. E constatei: já é Natal outra vez, e nada se fez.
As árvores continuam desiguais. Há árvores perenes, adornadas com presentes, luzes e cores. Há árvores breves, decoradas com carências, sonhos e anseios. Há árvores invisíveis, roídas pelas misérias, sombras e trevas. Sim, já é Natal outra vez, e nada se fez.
A angústia cresceu no meu peito acelerado pelas batidas do coração partido e me fez desejar passar a mão na cabeça dos meninos e das meninas que não conhecem a magia e a poesia do Natal. E como o frei, chorei.
Déa Araujo, 60, é escritora de poemas, contos e crônicas. Tem
textos publicados em antologias, revistas, sites, materiais didáticos
e em suas redes sociais. Estuda Letras na Universidade Federal de
Juiz de Fora.