Orquídea
Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de dezembro de 2021 é “angústia”
O olhar da mulher sobre o olhar de soslaio da menina que já foi, tornou-se úmido.
A menina que sonhou ser tudo
Seu consagrado sal e a velha mística que lhe acompanha desde que virou mulher estão agora refletidos num pálido sol de inverno.
Vivo em um altar que nem mesmo sei se é pagão, ateu, agnóstico ou se é um simples altar pessoal. Altar que a mulher construiu para guardar suas relíquias, ao lado de sua amada harpa desafinada.
Eu habito um espelho cheio de facetas que a mulher não enxerga.
Eu, orquídea de apartamento, plantada em um vaso com apenas alguns cacos de substrato e pouca água, me mantenho florida.
A mulher sente-se presa.
Já vivi em florestas, campos, cerrados, dunas, restingas, tundras e até mesmo em margens de desertos, nunca precisei de tronco algum. Não perdi minha inocência e nem minha vontade de florir.
Ainda assim, temos má fama, eu e a mulher.
Mas na verdade não causamos danos ao hospedeiro. Só precisamos, às vezes de troncos, galhos e gravetos para nos apoiar.
A mulher anda de um lado para o outro inquieta.
O que aflige a mulher?
Teme a solidão da noite?
Teme que chuvas e ventos a encharquem e a sufoquem de tédio?
Teme florescer e depois murchar?
Será que esqueceu que é a chuva na noite escura quem deposita nutrientes em nossas raízes?
Será que sou a única a me manter florida sem um tronco a me sustentar?
Nos espelhos que habito vejo o reflexo de um vazio a ser preenchido em meio à urbe.
A mulher fala que não gosta da urbe, mas vive em uma ponte que une nosso submundo selvagem ao vazio da metrópole.
O vazio da metrópole guarda uma chave que afina eternamente a velha harpa da mulher que não para afinada.
Finda o dia, se esvai a luz do vago altar armado.
A luz se acende na ponte que mantém o elo entre os dois mundos.
A mulher para de andar, começam a sair palavras da ponta de seus dedos que não tocam a harpa.