O tempo mastiga os sonhos

O tempo mastiga os sonhos
(Foto: Sharon Mccutcheon/Unsplash)

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de julho de 2020 é “tempo”


Quando o mês de janeiro chegou, meus cabelos brancos, a flacidez na pele, e mais alguns pormenores quase me derrubaram. A verdade é que fiz 59 anos e a certeza de que a vida é bruta, e a lapidação estranha. Em que lugar eu deixei meus óculos? Onde estão os livros? As histórias que eu quero escrever? Tento buscar tudo em três tempos. E me cobro por isso. Sigo a me buscar em meio a tantas lembranças.

Procuro lentamente. E o que vejo a cada cena é uma menina arredia, sem respostas, cheia de esconderijos pelos cantos da casa.  Uma adolescente perdida em devaneios. Uma adulta cheia de cobranças. Hoje uma velha com inúmeras lutas, muitas perdas e conquistas. Uma imensidão de vivências. O tempo tão vasto, diluído em saudades.

O tempo escapa pelas minhas mãos. Escorre entre meus dedos no teclado de um computador.  Abandonei meus cadernos coloridos, deixei páginas em branco. Rasguei folhas desnecessárias. Joguei no lixo tudo que ocupava espaço. Respirar foi preciso.

Tudo é temporário. A história muda de lugar. Numa salinha bagunçada, observo: meu telefone fixo empoeirado. Quase não falo por ele. O celular virou personagem principal nesses dias carregados de neuroses, no isolamento social possível. Imprevisto.

Sinto saudades de caminhar pelas ruas, ir à biblioteca pública pegar livros emprestados ou passar uma parte do dia por lá, devorando leituras.

De repente, sinto vontade de gastar um pouco de dinheiro no bar da esquina. Pequenos prazeres. Esqueço. Guardo pra depois. Poder ficar em casa já é um luxo. Até porque o tempo agora é luto. Todos os dias incontáveis mortes, muitos choros, muitos danos.

Talvez aos sessenta anos eu escreva um novo livro, talvez até lá o lançamento do livro seja presencial. Chato, lançamento virtual. Não gosto.

Entendo que viver é complicado. Mas é bom. Enquanto isso…

Ando pela casa à procura de alguma invenção. Meio perdida diante do atravessar do tempo, mastigando meus sonhos.

Sandra Modesto, 59, mineira de Ituiutaba, professora aposentada, graduada em Letras

 

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