Luto, poder e coletividade

Luto, poder e coletividade

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de março de 2021 é “luto”


A epicrise pandêmica e a falta de civilidade que nos empurrou até aqui atingiu um número bizarro: quase 300 mil mortes, com recordes diários com mais de um óbito por minuto.

Há de se pensar se e como a vida humana em toda sua dimensão psíquica, social, histórica e política é capaz de resistir à desintegração frente a produção incontrolável de mortos e da profusão sem fim de uma espécie de luto silencioso — na mesma medida em que é escandaloso — num momento em que sentimos não mais encontrar uma relação de dependência temporal inflada de expectativa pelo porvir.

Obviamente, há doses ideológicas suficientes para neutralizar qualquer afecção que solidarize com o desamparo do outro, produzindo os anticorpos que garantam um estado meio alucinógeno meio paranoico que nos convença de que estamos imunes. Nesse caso, não há experiência de luto desejada, pois não reconhecimento de interdividualidade.

Mas acredito que exista um caminho oposto que não nos faça encerrar os ânimos sem precisar recorrer a domesticações imaginárias. Talvez esse caminho se dê pelo próprio aprofundamento na gravidade da realidade, pelo próprio caminho do luto. Somente pelo encontro direto com nossa vulnerabilidade, sem discursos alienantes que estanquem a miséria do mundo real, é que podemos resistir de fato à fragmentação que a pandemia tem nos causado.

Seria o momento de se perguntar: mas o que é uma experiência de luto desejada? Como pensar um luto que seja capaz de redimensionar nossa relação com o presente/futuro e que elabore o sentimento de perda de maneira bem-sucedida, criando caminhos de revitalização da existência entre nós?

É claro que uma experiência de luto desejada não significa desejar o luto, como se fosse desejável submeter-se a um estado de profunda angústia como esse. E também, o fato de haver um sentimento de perda bem-sucedido não se auto justifica do ponto de vista social e político.

Judith Butler nos lembra que a perda e a vulnerabilidade se originam precisamente do fato de que nossa ligação enquanto sujeitos é estreita, somos apegados uns aos outros e estamos expostos, correndo risco de violência por tal exposição. Quando perdemos alguém, perdemos uma parte de nós que nem sempre sabemos qual era. É como se algo nos despossuísse, colapsando nossa individualidade e nos tirando do controle da própria condição. Desta forma é que o luto não só cria uma questão no nosso controle sobre as narrativas a nosso respeito, tirando nosso senso de autonomia, mas também revela que o laço social que nos constitui desde a tenra formação implicou uma dependência relacional irrevogável, uma responsabilidade ética que está em nossa própria origem.

Por isso, o luto nunca é algo privado. O luto exibe a forma como o outro nos desfaz, comunica que não há nada autenticamente “meu”; nem afetos, nem predicados, nem espaços. A categoria de possessão exige abandonada quando somos deslocados do centro de gravidade que julgamos ser determinado pelas nossas escolhas conscientes e senso de propriedade. Não somos nós, sujeitos, que possuímos nossos afetos. São os objetos que nos afetam. Eles geram efeitos em nós.

Imprescindível para nosso tempo, o poder do luto não é outro senão o de fornecer um senso de coletividade política. Unir-nos a partir de uma experiência de vulnerabilidade que motive a solidariedade mútua. “Algo em nós se foi…”

Mas lembremos que o valor do luto não diz respeito somente às suas afecções colapsantes. Ele é, desde Freud, um trabalho, uma perlaboração. Ele requer que passemos por um processo de transformação radical que nos modifique e nos habilite novamente para as relações. Na verdade, o trabalho de luto nos põe o dever de fazer memória do objeto ou da pessoa que perdemos. Pois o luto nunca foi o abandono ou a mera substituição do ente que nos abandonou; ele é a possibilidade de inscrição simbólica da perda, a produção de uma narrativa que lastreie aquele sentimento. A memória é o antídoto para a barbárie. Sem a capacidade de elaborar a angústia da perda, incluir em uma narratividade aquele que se foi e não volta é a única forma de interromper a alusão paralisadora do traumático – aquele que sempre retorna no real.

Hoje, mais do que nunca, devemos fazer memória de nossos irmãos e irmãs que foram perdidos. Somente esse gesto profético-político pode reconstituir o caminho de volta, na consciência de que a força da coletividade é a única capaz de unir seus membros em torno de uma memória revitalizante. Se o luto pode um conferir um poder, ele só o poderá a partir do poder da coletividade.

 

Baterista e leitor da Cult, Micael Correia, 22,
é estudante de Psicologia em Anápolis (GO)

 

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