Liberdade: o que te prende?
(Foto: Reprodução Banksy/ Arte Revista Cult)
Lugar de fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de outubro de 2020 é “liberdade”.
Para falar sobre liberdade, precisamos pensar no contraponto do que é o aprisionamento, sobre aquilo que nos escraviza. E, ainda, sobre a questão: quem nos aprisiona? Somos escravizados por quem?
Somos, desde a nossa formação histórica, marcados pela colonização e pela escravidão de negros e índios, onde a segregação está instituída de forma tão enraizada que sequer nos damos conta.
Segregar significa separar, isolar indivíduos em relação a fatores biológicos ou sociais como raça, riqueza, gênero, religião, profissão, nacionalidade etc. Mas separar quem em relação a quem?
Separar em relação àquilo que nosso eu narcisista não se identifica, àquilo que em nossa subjetividade (enquanto sujeitos, mas também enquanto sociedade, coletivo) se nomearia como estranho ao “eu”, a partir do lugar de fala. A segregação é uma questão que aborda a relação do outro em nós, a questão da alteridade, já formalizada por Freud em 1919 no texto “O Estranho” quando fala sobre a singularidade que marca o sujeito, sua identidade mais íntima e, paradoxalmente, mais desconhecida de si, que o estrutura como tal.
Jacques Lacan, por sua vez, introduz já no início de sua obra, em seu primeiro seminário no ano de 1954, o conceito da fundação do eu, uma dialética do eu em relação ao outro, que produz o ponto de identificação do sujeito, a partir do esquema óptico dos espelhos. Identificação, no intervalo onde está a criança, seu eu, e sua imagem apreendida de si, no espelho, captada por ela enquanto outro, um outro de si. Essa apreensão espectral, virtual, aliena o sujeito numa imagem, assujeitando o ser à ela, alienando o eu à imagem desse outro, duplo de si.
O breve comentário sobre esse dois conceitos de Freud a Lacan serve para ilustrar o quanto a questão do eu e do outro estão articulados desde nossa formação como sujeitos, de forma estrutural e inconsciente. Sendo assim, a alienação e o assujeitamento ao outro nos é intrínseca e nos aprisiona, nos fazendo escravos de nós mesmos, aprisionando nossas escolhas, opiniões, preconceitos, julgamentos e por fim, aos laços que construímos por sermos seres sociais.
O problema dessa dialética é que nem sempre o sujeito e sua imagem ocupam lugares de simetria, portanto, os sentimentos em relação a esse outro, o da imagem, ficam mediados entre o par amor e ódio. Sentimentos que serão replicados em todos os laços posteriores do sujeito.
Fica claro, assim, que a questão da liberdade deve partir de um consenso no próprio sujeito, primeiro em sua posição subjetiva em relação a si próprio, à aceitação de quem se é nessa dicotomia, para ser então estendida a seus semelhantes, à comunidade em que vive e assim por diante. É por essa razão que a psicanálise pode ser entendida como política.
Libertar-se de si mesmo, caminho que se constrói numa psicanálise, permitindo ao sujeito a aceitação e o respeito do outro em si enquanto produção de pluralidades possíveis. Afinal, quem é livre para escolher quando se está preso a uma única opção?
Vanessa Checoli, 40, é psicanalista e autora do @psi.canalis.ando. Mora em São Paulo, capital, e pensa no caminho como algo que se constrói caminhando.