Intolerância religiosa na África
(Foto: Kyle Glenn via Unsplash)
Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados pelos leitores são publicados de acordo com um tema. O de fevereiro de 2020 é “intolerância religiosa”.
Por Antonio C. R. Tupinambá
Ao longo dos últimos anos, o continente africano é palco de mudanças políticas, especialmente nos países que experimentaram o efeito da primavera árabe. Esse efeito não foi, contudo, democratizante, resultando muitas vezes na simples troca de ditadores por regimes catalisados por fundamentalismo religioso, que jogam seus cidadãos na vala comum do totalitarismo e da extrema intolerância. Um alto preço a ser pago pelos que fogem às regras de comportamento prescritas, principalmente, aquelas de natureza religiosa.
Notícias frequentes no quadro desolador desses países giram em torno da insegurança com que vivem pessoas de confissão religiosa que se distancie ou se diferencie do islamismo. Muitos desses Estados que confundem práticas de governo e práticas religiosas veem em qualquer outro modo de vida uma razão para perseguição. No centro da perseguição por conta dessas práticas arbitrárias se encontram as minorias cristãs, que são, muitas vezes, vítimas de ataques que resultam em morte ou conversão forçada.
Sob o olhar indiferente de governos ocidentais que se sensibilizam profundamente com qualquer ato terrorista ou extremista dentro de seus próprios territórios, se sucedem e se alastram desmandos e tragédias em terras africanas. As raízes dessas práticas estão nos jogos de poder das diferentes facções criminosas/terroristas, que congregam fundamentalistas religiosos islamitas e de governos despóticos ou falidos. Especula-se, por exemplo, que até 100 mil cristãos tenham deixado o Egito desde o levante de 2011, durante a primavera árabe.
A perseguição ao grupo cristão aumentou em consequência do crescimento da influência de grupos islâmicos no poder político constituído. As eleições parlamentares egípcias, que resultaram em uma grande vitória dos partidos islâmicos, especialmente a Irmandade Muçulmana e a linha-dura “salafistas Nour”, levaram grupos extremistas a querer introduzir a lei estrita da Sharia (islâmica) em todo o Egito, permitindo ataques a cristãos e a membros de outros grupos minoritários.
No entanto, não são os cristãos a única minoria religiosa perseguida por fundamentalistas islâmicos ao redor do mundo. Os yezidi do Iraque, são também uma presa do autoproclamado grupo terrorista “Estado Islâmico”. Essa minoria conhecida por yezidi é uma comunidade ancestral que vive em zonas do Iraque, da Síria e da Turquia e tem na sua religião mistura de traços do zoroastrianismo, do islão e do cristianismo mas é particularmente odiada pelos islamitas, que os apelidaram de satânicos.
Assim como no Brasil acontecem perseguições religiosas abomináveis por certos grupos evangélicos neopentecostais aos cultos de origem africana, há na África exemplos iguais ou piores. Cristãos coptas egípcios têm seus direitos civis retirados ou limitados pelo “novo governo”; já na Somália são os cristãos locais que se refugiam em outros países, sendo sequestrados e forçados a decidirem entre ser executados ou se converter ao islamismo compulsoriamente; crianças de escolas cristãs da Nigéria são sequestradas pelo grupo terrorista Boko Haram, para, a seguir, serem vítimas de estupro ou entregues em casamentos forçados com terroristas que integram o próprio grupo extremista sequestrador. A matança com que se banqueteiam os extremistas parece não ter fim.
Na páscoa de 2015, as notícias mais tristes de crimes de intolerância religiosa vieram do Quênia. A fúria jihadista atingiu mais cristãos naquele país, levando o Papa Francisco a se queixar de um “silêncio cúmplice” das pessoas perante o ocorrido. Desta feita, uma tragédia se deu no campus universitário de Garissa, no Nordeste do país, onde a milícia islamista Al-Shabab matou cerca de 148 pessoas pelo simples fato de terem outra confissão religiosa que não o islã: o grupo terrorista separou os muçulmanos dos não muçulmanos, mantendo os primeiros apenas como reféns enquanto executava os demais. A mistura entre Estado e religião, algo comum nesses países, é combustível do totalitarismo regado a fundamentalismo religioso.
Como afirmam Flávia Piovesan e Silvia Pimentel (Aborto, estado de direito e religião. Caderno Opinião. Folha de São Paulo, 6 de outubro de 2003.): “O Estado laico é garantia essencial para o exercício dos direitos humanos. Confundir Estado com religião implica a adoção oficial de dogmas incontestáveis, que, ao impor uma moral única, inviabiliza qualquer projeto de sociedade aberta, pluralista e democrática. A ordem jurídica em um Estado democrático de direito não pode se converter na voz exclusiva da moral de qualquer religião.”
É exatamente em estados laicos que todos os grupos populacionais, sejam eles religiosos ou não, têm o direito de constituir suas identidades em torno de seus princípios e valores, uma vez serem parte de uma sociedade democrática, sem, contudo, pretenderem se tornar hegemônicos. Uma lição que parece fazer falta aos países africanos, que querem, à força, teocratizar seus governos, hegemonizar suas culturas, tornando-se, dessa forma, coniventes com ações extremas de seus membros terroristas travestidos de religiosos.
Antonio C. R. Tupinambá é professor titular do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC).