A intolerância em mim

A intolerância em mim
(Foto: Christian Cravo)

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados pelos leitores são publicados de acordo com um tema. O de fevereiro de 2020 é “intolerância religiosa”.


Por Cleonilton Souza

No tempo de criança eu ouvia os adultos dizerem que o candomblé era coisa ruim e que pessoas ligadas aos rituais afro-brasileiros eram perversas e interesseiras, pois em troca de uma macumba eram capazes de tirar todo o dinheiro que um crente tivesse.

Naquela época havia na sala de casa uma imagem de uma mulher branca, de olhos bem escuros, nariz fino e cabelos compridos. Na testa havia uma coroa que a deixava com a aparência de princesa. A mulher andava sobre as águas em um gesto majestoso, usando um vestido azul.

Minha mãe dizia que ela era Iemanjá. Nisto pairavam minhas dúvidas: como uma mulher branca poderia ser Iemanjá? Olhava para as negras que iam para o candomblé e não via ninguém com aparência da Iemanjá daquele quadro.

Mas, mesmo com a dúvida quanto à origem do orixá, afastei-me do candomblé por causa daquele sentimento de medo.

Na verdade, eu estava envolto em um sistema dos mais perversos da intolerância religiosa: além de testemunhar a frequente desqualificação à religião de matriz africana, via constantemente imagens da cultura africana como se fosse algo de bom pertencente à cultura europeia.

O retrato era a representação lapidar da intolerância simbólica, pois tirava da comunidade negra o direito de construir a própria imagem de transcendência.

Foi somente com a exposição a discursos desqualificadores de tudo o que era de origem africana, sejam: a cor da pele, a religião, a forma de se vestir, o jeito de andar e de falar, que fui percebendo o quanto a intolerância cultural era construída cotidianamente para diminuir a estima dos afrodescendentes.

Com o tempo comecei a perceber os implícitos das relações étnicas brasileiras. No trabalho, não podia usar cabelo rastafári, não podia também usar roupas coloridas. Quando o assunto era religião, os impropérios e os comentários deletérios eram sempre contra a Umbanda e o Candomblé.

A intolerância brasileira vem historicamente do processo de colonização e se estende até os dias de hoje: das práticas de catequese no período colonial, passando pela tentativa de eliminação dos rituais de origem africana na república, até a tentativa atual de hegemonia por parte das matrizes evangélicas sobre o simbólico do brasileiro.

O intolerante se ver único, se ver sobre o outro, não admite outras formas de vivenciar a transcendência. O intolerante age nas relações interpessoais e nas dinâmicas institucionais. A ação intolerante é uma prática de comunicação violenta; é uma barbárie e vai contra toda forma de convivência pacífica entre os homens e as mulheres.

Cheguei à quase-velhice e noto que não sou adepto de nenhuma religião; percebo também que os fatores históricos, os símbolos e as representações criaram em mim um alerta quanto às intolerâncias cotidianas, mas não deixaram que eu me aproximasse de minha ascendência religiosa.

Cleonilton Souza (56) é educador e mestre em Políticas Sociais e Cidadania em Salvador (BA).

 

 

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