Inocência

Inocência
(Foto: Reprodução)

 

Por Vitória Cristina Pereira Pires Barbosa

Escancarou a boca soltando um longo bocejo. O sol já se prostrava alto do lado de fora, era hora de sair. Na casa pouco iluminada ele procurou por sua mãe, não a achou em lugar algum. Estranho. Ela dificilmente saía sem ele. Esperou por algum tempo até tomar coragem para sair sozinho. Imitando mamãe, ele colocou primeiro a cabeça para fora, varrendo o terreno com os olhos e procurando alguma possível ameaça. Nada. Nenhum movimento acompanhado de nenhum som audível a ele. Farejou o ar pela última vez antes de pisar fora da toca. Um odor pútrido era perceptível ao longe, mas não havia nenhum outro animal por perto.

Convencido de que não havia perigo, o tatuzinho tomou coragem e começou a se afastar de sua toca, procurando alimento. Após uma considerável caminhada – que não era muito extensa de fato, mas para ele e suas patinhas gordas… – encontrou uma trilha de formigas. Seguiu-a, devorando aquelas que não conseguiam fugir para o formigueiro. De repente, um pássaro passa voando exasperado, na direção contrária do pequeno mamífero. O animal, aos berros, agia como se estivesse sendo perseguido por algo, talvez um gavião. O tatuzinho, com medo, entra correndo no mato alto. E se quem quer que estivesse perseguindo a ave mudasse de ideia e mirasse nele? Seu coração palpitava pelo susto que havia tomado, então, aguardou as batidas voltarem ao normal. Aparentemente, não havia ninguém atrás da ave.

Agora, mais receoso, tentava voltar à trilha de formigas da qual estava se alimentando quando se deparou com uma bela flor à altura de seus olhos. Suas pétalas valsavam ao menor princípio de brisa e sua coloração alaranjada prendia a atenção de qualquer um que a olhasse. Aproximou-se rapidamente, imaginando qual seria o seu perfume, quiçá sabor. Colocou o focinho dela, apesar de sentir calor emanando da flor. Seu nariz ardeu com o contato. Uma pontada de dor se espalhou por toda a sua face e o tatuzinho, assustado, saiu correndo em direção à proteção de sua toca. Não devia ter saído sem sua mãe.

Suas patas já começavam a doer com tamanho esforço, seu focinho latejava e ele não conseguia achar a toca de jeito nenhum. O odor horrível no ar ficava cada vez mais forte, mas farejando o ar sentiu ao fundo o dor de sua mãe, ainda que bem fraco. Se agarrou desesperadamente àquele cheiro e passou a persegui-lo, com medo de perdê-lo. Semicerrando os olhos, pois uma neblina cinzenta passava a dificultar a visão, conseguiu enxergar ao longe uma silhueta parecida com a dele próprio. Era de lá que o cheiro vinha. Se aproximou lentamente e de cara constatou que apesar de ter o cheiro de mamãe, não podia ser ela. Esse tatu tinha a pele toda vermelha, cheia de manchas escuras e o seu nariz estava inteirinho descascado. Ele permanecia imóvel mesmo perante aos gritos e cutucões do filhote. Além disso, dormia numa posição esquisita. Mamãe tinha a pele linda, lisinha, tinha também o sono muito leve e jamais dormiria do lado de fora da casa, ainda mais naquela posição peculiar. Era o mesmo cheiro, mas não podia ser ela. Decidiu deixar o outro tatu dormindo.

Pensou em procurar novamente o caminho para a sua toca. Começou a fazê-lo quando passaram muitas aves fugindo angustiadas, seguidas por um miquinho e uma anta que também fugia como se sua vida dependesse disso. Se até uma anta, que era daquele tamanho, estava fugindo, por que ele ainda estava parado?

Mesmo cansado o tatuzinho desatou a correr. Não sabia para onde ia nem mesmo do que fugia, mas praticamente obrigava suas patas a continuarem, desesperado. O ar havia escurecido ainda mais e começou a fazer muito mais calor. O filhote não conseguia ver mais nada à sua frente. Havia perdido o rastro dos outros animais. Era difícil respirar, cada inspirada fazia seu peito arder. A língua estava tão seca quanto o chão e o focinho machucado ainda doía. Olhou para o alto tentando se orientar e finalmente viu do que os demais fugiam.

Eram centenas, milhares das flores que havia visto antes juntas, formando uma parede laranja maior que as próprias árvores. A bela flor transformou-se em uma fera assustadora cujo fedor de enxofre enchia cada respirar de quem estivesse próximo. O calor tornou-se insuportável.

O filhote se viu então cercado pelas labaredas incandescentes. Ele queria fugir, mas, mesmo que pudesse passar pelas chamas, o seu corpo não aguentaria muitos mais passos. Absolutamente todas as suas partes doíam. Até o respiro causava uma dor lancinante. Em um ato de desistência, permitiu que suas patas cedessem e deitou no chão sequioso, em uma posição estranha da qual não tinha mais forças para sair. Seus pequenos olhos ardiam e o pouco de água que lhe restava no organismo transformou-se em lágrimas. Ele fechou as pálpebras e lembrou-se de sua mãe, fingiu que o calor que o cercava não passava do calor dela o aquecendo. Uma última lágrima escorreu e quando o tatuzinho deu seu também último suspiro, era o amor de mamãe que ocupava inteiramente seus pensamentos.

Vitória Cristina Pereira Pires Barbosa, 18, é estudante em Campinas, SP

 

 

Deixe o seu comentário

TV Cult