Influxo, suspensão, afluxo

Influxo, suspensão, afluxo
(Foto: Silas Kohler/Unsplash)

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de julho de 2020 é “tempo”


Jogo fora as chaves do tempo.
Esse tempo que parece brincar com a vida,
rir de todos nós.
Nunca as tive e as jogo fora.
Longe, bem longe do que procuro.
Nem sei o que procuro, mas caminho.
O tempo se esvai.
Nisso, se fortalece. Não se entrega.
Nós vamos ficando.
Ficando.
Ficando…
Cada dia mais fortes. Ou entregues a fissuras.
Mais temerosos. Mais (irre)quietos.
Ficando o que sempre fomos
e o que nunca poderemos ser.
Nessa contradição, existimos.
A contra-vento, a contra-tempo, na contramão.
Existimos apesar do tempo.
Que se quer tão infinito e vasto,
que duvida de nossas fraquezas,
a quem tantos suplicam por um pouco mais.
De tempo. De vida. Na vida. Em nós.

Jogo fora as chaves do tempo.
Reinicio. Remodelo. Revivo.
Tempo suspenso. Não por mim. Nem por ele.
Tempo desfragmentado, sem saber.
Sem saber quando repartirá em um curso
mais ou menos linear.
Não existe linearidade para ele.
Nem para nada que não seja geometria.
O tempo se afoga. Em mim, o tempo se afoga.
Transformo a vida em mais vida.
Sem a ela pedir permissão.
Dou o tempo que o corpo precisa
para criar o que já pulsa.

Pulsamos.
É a chave para o tempo.
Essa que não se pode jogar fora.
Porque se a tem, sempre.
Pulsamos, com o tempo.

*

Subitamente, o tempo do nosso tempo sofre um baque, uma pressão abrupta, violenta. Hipocrisias sociais são desmascaradas. Não há mais como fingir que as feridas expostas, em carne viva, de nossa história não existem. Há porta-vozes de cada uma delas, que sentem e vivem na pele, no âmago da existência, o escarno do poder vigente, cego pelo ódio a toda singularidade. A sociedade é feita de singularidades. Quem odeia isso, odeia toda a humanidade. E o que vemos, então, é genocídio. E respostas com luta urgente para um novo fluxo, um novo tempo, uma nova vida.

 

Renata Mattos Avril, 40, é psicanalista, musicista amadora,
doutora em Pesquisa e Clínica em Psicanálise pela UERJ e pós-
doutorado pela Université de Nice Sophia-Antipolis.

 

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