Ex-tátua

Ex-tátua

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de dezembro de 2021 é “angústia”


Tinha pó no teclado do computador, sobre a mesa de trabalho, que era a mesma de estudo, que era a mesma de tudo. Fazia tempo que eu não saía da frente da tela, de entre a mesa, de sobre a cadeira. Essa poeira veio de mim. Poeira de pele, pelo, roupa, rosto, resto.

A vista se habituou a enxergar à curta distância, a se fixar em retângulos luminosos, a se acomodar em cômodos. Ela desaprendeu paisagens. De que valia o esforço, se ele mais me custava do que me compensava, se ele mais me punia do que me consolava?

Não tenho muitas demandas. Isso não significa que minhas vontades sejam poucas. Sei viver na escassez assim como sei aproveitar a abundância.

Cedi estrategicamente. Estudei seus movimentos. Contei suas cabeças e aprendi a cortá-las. Se continuasse como estava, eu me petrificaria aos poucos. Tive de me mover, antes que eles me transformassem em estátua definitiva. Acumulei potência – por enquanto, eu me movo com cuidado, aos poucos, que é pra não atear fogo no mundo.

Cheguei finalmente ao nada. E na minha satisfação de ter alcançado em mim o mínimo de existência, apenas a necessária respiração – então estou livre. Só me resta inventar. Mas aviso-me logo: eu sou incômodo. Incômodo para mim mesmo. Sinto-me desconfortável neste corpo que é bagagem minha. Mas esse desconforto é que é o primeiro passo para a minha – para minha o quê? verdade? Eu lá tenho verdade? […] Não tenho nenhuma saudade de mim – o que já fui não mais me interessa! E se eu falar, que eu me permita ser descontínuo: não tenho compromissos comigo. Eu vou me acumulando, me acumulando, me acumulando – até que não caibo em mim e estouro em palavras. (Clarice Lispector, Um sopro de vida)

Não se engane. Se eu parecia apático por fora, pétreo, é porque estava ocupado por dentro, canalizando os pensamentos que me vinham e ainda me vêm aos borbotões. Essas torrentes querem tudo. Elas anseiam diluir toda a matéria da vida e me servir seu suco grosso para que eu o beba com goles grandes de um fôlego só.

Tomarei a vida de súbito. E tal vai ser sua surpresa, que também eu serei surpreendido, de modo que não nos será possível encontrar resposta pronta um pro outro no cálculo antecipado. Seremos espontâneos.

Sinto que vivi o suficiente pra reivindicar minhas vontades – as de agora, as que virão e as que não virão. Pro caralho a perplexidade alheia. E que se evadam os que se escandalizam com pouco, porque, em silêncio, acumulei vasto repertório e me tornei aliado das minhas sombras. Quero a propriedade da minha própria angústia de viver: desse intervalo indeterminado entre um início contingente e um fim certo.

E se um dia, ou uma noite, um demônio lhe aparecesse furtivamente em sua mais desolada solidão e dissesse… “Esta vida, como você a está vivendo e já viveu, você terá de viver mais uma vez e por incontáveis vezes; e nada haverá de novo nela, mas cada dor e cada prazer e cada suspiro e pensamento, e tudo o que é inefavelmente grande e pequeno em sua vida, terão de lhe suceder novamente, tudo na mesma sequência e ordem […]. Você quer isso mais uma vez e por incontáveis vezes?”. […] o quanto você teria de estar bem consigo mesmo e com a vida, para não desejar nada além dessa última, eterna confirmação e chancela [?]. (Friedrich Nietzsche, A gaia ciência)

Minha resposta: “Eu faria tudo diferente, seu demônio. Deixe a mesma vida, as mesmas escolhas, os mesmos hábitos, as mesmas regularidades pros desavisados. Eu quero me reinaugurar a cada instante”.

 

Felipe Ferreira de Melo, 29, é jornalista especializado em
‘Português: língua e literatura’, e mestrando em Tecnologias
Comunicação e Educação pela UFU. Atualmente, trabalha como
redator publicitário na cidade de Uberlândia, Minas Gerais.

 

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