Escrita

Lugar de fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de outubro de 2020 é “liberdade”.

Escreveu “liberdade” na janela do quarto, no espelho do banheiro, na entrada da cozinha e foi embora. Algumas roupas na mochila, muitas músicas para ouvir no caminho. Não sabia se conseguiria prosseguir depois que trancasse a casa com a única chave que tinha, deixando-a na caixa de correios. Era preciso.

As palavras ali rodando, sem deixar o pensamento sossegar. Livre, livro, live, li, liberdade, Lieb, lien, lieu, livre, livro, literatura, livramento, livre, ivre, vive…

Palavras estrangeiras indicando rotas, talvez. Vivo, lugar, amor, laço, ébrio…  a liberdade em ato lido, em livro lido, em se sentir livre pela literatura, embriagado de vida, por uma vida mais forte que a vida, pela arte, vida que perdura.

Existe liberdade maior do que se tornar livro? Ou essa é uma sina, que aprisiona e reduz a vida ao amor pelas letras?

Saiu de casa em busca de uma liberdade que liberta, desafoga. Com a intenção de se livrar de si, de inventar num livro um outro ser. Páginas vazias a preencher, a percorrer. Para poder, enfim, se permitir viver mais forte a própria vida.

Em tempos em que sair ou ficar em casa é um desafio, a escrita pode ser um modo potente de reinventar a liberdade. Estamos expostos – a um vírus que nos atinge mesmo se nos isolarmos, mas com algum de nossos próximos precisando continuar a circular pela coletividade; expostos a mentiras, manipulações, falácias; ao descaso e indiferença face ao outro em tantos e tantos níveis; a destruições de espaços e biomas que, embora sejam responsabilidade de alguns governos, pertencem a todos nós…

Estamos expostos. A escrita pode virar luta, posicionamento, liberdade para o “1 + 1 + 1 + 1 + …” que somos.

Renata Mattos Avril, 40, é psicanalista, musicista
amadora, com pós-doutorado pela Université Côte d’Azur
e doutora em Pesquisa e Clínica em Psicanálise pela UERJ