Epidemia de angústia
Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de dezembro de 2021 é “angústia”
Sou a filha do meio, e como filhos do meio são esquecidos, virei uma espécie de observadora profissional. O Natal se aproximava, e minha família discutia a organização da ceia. A pandemia do covid-19 arrastava-se a quase dois anos. A família não se reunia durante todo esse tempo. Todos estavam ansiosos e exaustos com o fim do ano, que mais parecia o fim do mundo. Mais do que nunca, dessa vez, era preciso estarmos juntos para celebrar a vida.
Mantínhamos um grupo no celular e há um mês já fazíamos planos para organizar a ceia. Era uma espécie de terapia com debates calorosos. Minha irmã mais velha sofria dos nervos, lidar com ela não era fácil, e exigia um pouco mais de paciência. Ela era uma espécie de Mítia, personagem marcante dos irmãos Karámazov. Assim como ele, os nervos dela a dominavam, os vivia até o seu último nível. Se bem que ultimamente ela tentava a todo custo dominá-los. Se fosse comigo, tudo certamente seria ignorado, mas em meio a essa luta interna, os nervos venceram. Nem o seu colar de âmbar fora suficiente para evitar os desastres.
Durante a pandemia trabalhar no modelo remoto fora um grande desafio. Em meio a homens machistas, coordenava a sua equipe usando os seus recursos natos de gestora, nem sempre os seus subordinados aceitam as ordens, ainda mais vindas de uma mulher. A última palavra mesmo quem dava era o seu gerente, era disso que se esquecia, e lembrou-se de repente ao enfrentá-lo pela segunda vez.
A compreendíamos, mas os outros, não. Dia desses no grupo rememorava que em um Natal, nossa irmã havia nos deixado para passar as festividades com outra família. Dizia que a outra havia quebrado uma tradição, porém nunca soube dessa tradição. Já meu irmão caçula era neutro nas discussões, aliás, não compreendia porque nós mulheres alterávamos tanto de humor. E, tinha eu que aparentemente neutra, no fim da história, decidia tudo.
As discussões para a ceia seguiram, até que ficou acordado que seria em minha casa, cada um levaria um prato. Parecia que tudo estava resolvido. A paz reinou no grupo novamente, que voltou a receber bom dia e figuras animadas.
Até que um dia no trabalho meu telefone vibrou e passei a receber muitas mensagens. Percebi que vinha do grupo dos irmãos e decidi ler as mensagens. A mais velha comunicava a todos:
— Vou falar aqui neste grupo para não assustar os filhos. Fui demitida do emprego, nem liguei. Senti um alívio. Recebi muito apoio de todos. O meu gerente é osso, mas o dono acredita nele. Nem estava nervosa, nem nada, só pensando no Natal mesmo. Mas, o coração foi a 215. Cheguei em casa, nem queria vir, mas o Rogério insistiu. Daí eu vim. Cheguei aqui foi aquele desespero, quando viram os sinais vitais. Fui pra UTI, passei por reanimação química. Duas injeções. Voltou o batimento, mas tiveram que me internar.
Conhecia bem a minha irmã, escolhi com cuidado as palavras que escreveria e decidi não dizer nada muito alarmante. Disse apenas — Fique calma! Meu medo era que o seu coração parasse e não suportasse mais nenhuma notícia. Lembrei-me da nossa última conversa. Ela fazia muitos planos para se mudar. Muito vaidosa era muito consumista. Tentava resistir às tentações para a realização de seus sonhos. De repente um medo súbito da morte tomou conta dos meus pensamentos. Por um momento pensei que pudesse perdê-la. O que seria de seus filhos? Imaginei a caçula órfã de mãe aos 13 anos e o mais velho com certeza não suportaria essa perda. Ela deixaria para trás todos nós.
A figura dela não combinava com hospitais. Suas últimas postagens era sobre deixar tudo por fazer ao encarar a morte. O texto dizia que a morte era ridícula. Quando li, concordei.
Através do celular passou a relatar a rotina no hospital. Dizia que na UTI já a acordavam com uma injeção. Não havia mais lugares para furar, dizia nos áudios. Passados uma semana na UTI teve alta para o quarto. Finalmente chegara o dia de voltar a tomar o seu banho com autonomia. Seus primeiros pedidos foram roupas, maquiagens e alguns pertences. Mesmo que para isso seu marido tivesse que descobrir em casa algumas sacolas nunca antes mexidas, revelando as suas compras clandestinas. Mas, sabia ela que naquele momento ele nada diria.
Receber seus pertences lhe trouxe de volta o gostinho da vida. Após um banho demorado, vestiu-se como num ritual para sair à rua. Abriu as sacolas, escolheu a roupa que mais lhe agradara naquele momento, tirou as etiquetas e as vestiu. Repetiu por vezes o movimento de abertura das embalagens dos objetos novos. Inaugurá-los dava-lhe prazer. Em casa sabia que havia mais compras esperando por esse ritual. Lembrou-se que por diversas vezes usou roupas com etiquetas, na pressa saia sem arrancá-las. Nesse instante em sua mente fez planos para abandonar as compras de uma vez por todas, e prometeu em silêncio a si mesma aproveitar a vida de outra maneira. Talvez ir mais à praia, ao campo ou simplesmente destralhar o seu apartamento de uma única vez.
Enfim, arrumada, tirou uma foto no espelho do banheiro. O conforto do quarto a agradava. Era o convênio do marido e a todo o momento o elogiava, apesar das reclamações da comida sem sal. Por um instante sentiu-se feliz. Estar envolta em roupas novas era a mais completa felicidade. O marido que havia descido para fazer um lanche enquanto se arrumava, olhou no relógio e percebeu que já era hora de voltar.
Quando entrou no quarto não a viu. Pensou que ainda estivesse no banheiro. Chamou por seu nome, mas ninguém respondeu. Foi até o banheiro, puxou a maçaneta e a porta abriu-se. Ficou confuso. Em cima da cama alguns objetos espalhados como se alguém ainda fosse precisar deles. Neste instante a porta do quarto se abriu, e entrou o médico que a tratava. Sua fisionomia era de cansaço e de quem não dormia há dias. Chamou meu cunhado, e disse-lhe que minha irmã não resistira, e que estava morta.
Desesperado não entendia como isso havia acontecido, pois ela estava bem, afinal só desceu para lanchar. Enquanto o médico explicava meu cunhado ia ouvindo a sua voz de longe, ficando quase inaudível. Percebendo seu estado o médico pediu que o sentassem, e o deixou respirar. As próximas horas foram de total desespero. Em sua mente passava mil coisas. Era como se o tempo tivesse parado.
Sem condições de dirigir meu cunhado ligou para o irmão, que logo veio a seu encontro. Dali à uma hora estavam todos no hospital. O luto foi vivido por todas as horas que se seguiram. Ninguém queria acreditar.
Passados dez dias meu cunhado foi chamado na empresa onde minha irmã trabalhava para assinar os papéis. Ao chegar lá não fora recebido pela dono, e sim pelo RH. Percebeu que na mesa dela já havia alguém. Após assinar os papéis saiu do local. No carro ainda ficou parado por alguns minutos, tudo parecia um pesadelo sem fim. Descobrira que minha irmã havia deixado um seguro em seu nome, e dos seus três filhos.
Aos quarenta e cinco anos deixara os filhos, marido, e todos nós para trás. Deixara seus objetos ainda em embalagens por abrir. As etiquetas das roupas permaneciam nelas, a espera de alguém para tirá-las. A praia ficou a sua espera, assim como o parque e o dia de sol. O Natal não será comemorado, assim como muitas outras datas. Se soubéssemos que partiríamos assim, trabalharíamos com cautela, curtiríamos nossas famílias, e colocaríamos em práticas todos os nossos sonhos.
O Natal chegara. Fazia frio e estava chuvoso. O nascimento e a morte se encontraram em uma mistura de sentimentos. A vida segue, como um rio que corre, seja em águas calmas ou revoltas. A nós só nos resta estarmos juntos e seguir adiante sem direito a optar pelo fim. Sabia que mais uma vez seria o porto seguro desta estrutura chamada, família. Mesmo triste, seria eu a primeira a reerguer todo o restante. A meia noite era possível ouvir fogos de artificio, que passou a ilumina todo o céu.
Vanessa Candida Silva de Almeida, 39, é professora da rede
pública de São Paulo. É mãe de dois pequenos e, nas horas vagas,
gosta muito de ler todo tipo de literatura.