É possível não conhecer seu cabelo

É possível não conhecer seu cabelo
(Foto: Lázaro Roberto)

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de março de 2020 é “racismo”


Como mulher negra sempre me foi dito, tanto por minha mãe, que é negra, quanto pela sociedade, que meu cabelo era ruim, duro, impossível de pentear. Acreditei na narrativa sem questionar, obviamente. Nunca havia percebido que desde os seis anos de idade era forçada a “relaxar” meus cachos (só aparei aos 26 anos). Para mim era natural, uma vez que a informação que chegava até mim era a de que, por ser negra, alisar/relaxar o cabelo era o procedimento padrão.

Vivia sob uma ditadura sem saber, sem nem perceber, completamente desconectada de mim e da realidade de mim. Só quando o movimento de youtubers negras brasileiras – que tinham como proposta contar suas histórias de transição capilar, ensinar a cuidar do cabelo crespo e disseminar a ideia de aceitação – foi ficando mais forte e expansivo que comecei a questionar minha relação com meu cabelo. Assisti a muitos vídeos, mas nada, a princípio, mudou em mim – uma vez que entender é diferente de criar consciência. Um dia, olhando no espelho, eis que um pensamento, desses que parecem iluminar o cérebro, surge: “não conheço meu cabelo!”.

Que susto! Que indignação! Que estranhamento…

“Como pode alguém nunca ter visto o próprio cabelo?”, me questionei. E, lógico, só poderia haver uma resposta: “Racismo”.

Não sabia a cor – a química queima o cabelo e o dá uma coloração diferente, tipo palha -, a textura, o comprimento… nada. Ao tomar coragem de ir contra a sociedade, pude me conhecer e me conectar com a força de meus ancestrais que me trouxeram até aqui.

A sensação é de que eu não era eu até passar por esse processo, uma vez que somos elementos de uma estrutura que nos força a dissociar de nós mesmos.

A partir da elucubração que me foi libertadora, percebi as crueldades sutis, e as nem tão sutis, do racismo a que todos os negros estão submetidos. Esses corpos negros, que foram e ainda são escravizados, representam para o dominador o não humano, o indigno. Absolutamente tudo nos é negado.

O racismo me priva de conhecer meu cabelo, minha história, do afeto, do trabalho, do conhecimento, da paz, da humanidade… Só nos sobra genocídio, subalternidade, silenciamento, violência etc. A lista é longa, assim como nossa dor e peso. São séculos.

Fabiola Christovão, 27, é formada em Administração e reside na cidade do Rio de Janeiro

 

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