Desejo capital
Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de maio de 2021 é “desejo”
A verdade agora é: desejamos desejar. A patologia dos últimos anos chama-se depressão, ou seja, nada mais que não saber direcionar o próprio desejo. A depressão é a perda da capacidade de desejar. Isso não demonstra que o desejo está perdendo sua força, mas que a sua impotência é o maior dos abismos. Não podemos não desejar. Em todo lugar ouvimos algo como “deseje isso”, “deseje aquilo”, “deseje você mesmo” etc.
Talvez isso não seja uma verdade secreta do humano, mas apenas uma configuração das transformações sócio-históricas. Nem sempre foi assim. No final do século 19, percebemos uma transição do ter para o consumir. Os serviços de hoje concentram-se na locação de determinados bens. As músicas não são compradas, como eram anteriormente os discos de vinil ou os CDs, mas são aglomeradas em plataformas e locadas para serem ouvidas. Os filmes e séries também estão na lógica de assinatura de entretenimento através do streaming. O investimento hoje é dinâmico. Comprar um imóvel é uma alocação ineficiente do capital, dizem os consultores de especulação. Os investimentos mais rentáveis têm liquidez, eles devem ser analisados a todo momento. Hoje não precisamos ter nada, somente consumir tudo.
O desejo foi representado pela falta por dois mil anos, desde Platão até Freud. No início do século 20, a vontade e o desejo começaram a trabalhar na produção. Nietzsche nos educou e apresentou o desejo como vontade de potência. Hoje, a produção cria, mas precisamos também destruir. Se a regra geral da nossa economia do universo fosse a produção, estaríamos soterrados em nosso próprio edifício. Precisamos também destruir, devorar, desperdiçar, consumir. O desejo produz, mas ele também consome. Quando desejamos tudo, consumimos o mundo e nós mesmos. O consumo, portanto, é solidário ao desejo. A depressão é a incapacidade de consumir, de consumir o nosso tempo, de consumir nossa vida, de ser produtivo. O depressivo não tem potência para consumir seu próprio eu desejante. O que percebemos nisso é uma obrigação de liquidez, um dispêndio obrigatório. Essa é a regra geral do nosso universo.
O desejo como lugar erótico da sexualidade também foi cooptado pelo imperativo da produção e do consumo. A sexualidade fálica tem dois problemas: 1. a ejaculação precoce (a explosão absoluta do engodo da libido); 2. a impotência (ansiedade pelo consumo do desejo). O sexo tornou-se o lugar de alucinação do gozo. O objetivo de transar é a apocalíptica higienização da energia libidinal enclausurada. Por isso mesmo, talvez não haja nenhum recalcamento, nenhum desejo fica pendente. O desejo é menos sedução e mais realidade. Ele precisa ser realizado, produzido. O fim do ritual erótico do sexo é a emergência do consumo da obscenidade pornográfica, o estancamento de toda sedução.
A obrigação de consumo e liquidez do nosso tempo é a própria economia política. O desejo hoje é a metáfora psíquica do capital. Todo o capital deve circular, não pode ser congelado em nenhum ponto fixo. Os fluxos de capital são reinvestidos todo o tempo. O capital trabalha para si mesmo, a potência do capital é a sua própria acumulação e dispêndio. A tendência do capital é se reproduzir não por sua acumulação infinita, mas por sua potência de expansão especulativa. O capital hoje é liquidez, assim como o desejo. Não existe desejo acumulado, desejo estático, ele é reinvestido em cada novo objeto de consumo, em cada novo relacionamento.
A grande promessa do capital é a liberação total. As forças produtivas da criatividade e do consumo devem ser liberadas para você ser a melhor versão de você mesmo. Existe um eu em você que deseja ser produtivo, que deseja ter a liquidez de uma empresa. Ou não, melhor que isso, existe uma empresa em você. Cada um só pode ser empreendedor de si mesmo, cada um só pode ser uma empresa, porque o desejo é o capital. Por isso, o desejo é a forma investimento que move a economia – tanto psíquica como política – do nosso universo. O desejo é a forma investimento do capital humano.
Consumimos toda a natureza. A própria noção de recursos naturais já pressupõe que a Terra pode ser representada como uma estrutura de recursos passíveis de serem consumidos. Achamos que desejamos viajar, desejamos um celular, desejamos bens. Mas desejamos mesmo consumir. A verdade é que consumimos nós mesmos para que possamos consumir o mundo, mas ele não é reciclável.
O consumo pode ser reciclável, mas não é reversível, nem o capital. Talvez o desejo seja reversível. Talvez esse retorno para si, o desejar o desejo, seja a falta. Esse vazio talvez possa ser o algo preenchido por um desejo outro, que não descobrimos ainda. Se não existe mais espaço ecológico para o capital hoje, talvez ainda haja para o desejo.
Ítalo Nascimento, 30, carioca, doutorando
em Filosofia que abre a geladeira pra pensar.