Desculpa, Mãe. Desculpa
Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de outubro de 2021 é “maternidade”
A cena daquela discussão ainda é clara em minha mente. Não lembro exatamente a minha idade, mas acredito que tinha por volta de quatorze anos. Foi nesse fatídico dia que magoei minha mãe. Profundamente.
Discutíamos sobre alguma coisa que eu queria fazer e ela não permitia, ou algo que eu não queria fazer e ela insistia que deveria ser feito. Me ocorre agora que algo tão superficial, que sequer lembro o que é, o motivo ou a razão, tenha causado tanta dor à minha mãe. O que lembro é que ela usou uma das justificativa do repertório básico de toda a mãe, o “porque eu sou sua mãe!”. Sei que faz parte do repertório básico, pois assim como eu, várias amigas já confessaram te-lo usado automaticamente. Ao ouvir aquilo, revidei, utilizando também uma justificativa básica do repertório das filhas adolescentes: “mas eu não pedi para ser sua filha!”.
Justamente nesse momento, pude observar algo se despedaçando na fisionomia de minha mãe, começando no rosto, trincando até o peito, e depois se estilhaçando, como um vidro fino que primeiro craquela e depois rompe, por inteiro.
Meu coração trincava em ressonância, talvez por já ter pertencido àquele corpo. Para meu arrependimento não havia maneira de voltar atrás. Queria eu ter a oportunidade de voltar atrás, como se retrocedesse uma fita cassete, porém, a palavra proferida é como uma flecha lançada, não é?
O remorso que Mamãe plantou em mim não foi com o “um dia você também terá seus filhos”, e sim com a forma como virando de costas ela saiu, enxugando as lágrimas que não deixou que eu visse.
Passaram vinte e cinco anos para que eu tivesse a real dimensão da dor que minha mãe sentiu. Vinte e cinco anos para que eu pudesse sentir a armadura da melhor mãe do mundo se estilhaçando como cristal, causando pequenas fissuras no meu peito. Vinte e cinco anos e minha segunda cria lança contra mim a mesma flecha que lancei contra minha mãe, fazendo-me lembrar da profecia. Praga de mãe, diriam alguns. Prefiro acreditar em amor ferido.
Sim, Dona Irma estava certa. Senti, da mesma forma ela sentiu (e centenas de milhares de outras mães também) a dor visceral de ter sua maior alegria, seu maior orgulho, seu maior amor rejeitado, mesmo que num impulso imaturo. Foi preciso passar pela mesma experiência para compreender o quanto parti o coração de minha mãe e refletir sobre a possibilidade de suas lágrimas também arderem enquanto brotavam em seus grandes olhos verdes.
A diferença entre nós é que Mamãe era uma mãe muito melhor. Virou as costas para que eu não encarasse ainda mais sua decepção.
Se ainda houvesse tempo, eu diria: Desculpa Mãe. Desculpa.
Quem sabe ainda há.