Coragem para se importar
Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de agosto de 2021 é “respeito”
Eram 11 horas da manhã e o sol a pino. Como de costume, peguei o ônibus para o trabalho que chegava habitualmente atrasado. Sentei e me preparava para mais um dia fatídico, seguiria com a rotina diária. Enquanto me rendia ao cansaço, apenas olhava para os outros, sem enxergá-los de fato, totalmente absorta nas minhas preocupações mesquinhas.
A quase cinco passos da minha cadeira, perto da porta de saída, uma senhora, aparentando ter uns 80 anos de vida, estava ao meu lado esperando a hora certa de descer. Uma de suas mãos segurava trêmula a bengala, a outra se equilibrava no apoio do ônibus. A velha senhora era negra, cabelos bem grisalhos, corpo curvado, traços do rosto marcados pelo tempo.
Eu mal a teria notado, se ela não tivesse gritado com a sua voz baixa: “Motorista! Abre a porta para mim! Você não parou direito no ponto de ônibus, eu não tinha como descer”. A partir desse momento, a cena deve ter roubado a atenção de todos os passageiros. Ao menos despertou o meu olhar, distante, passivo e descompromissado. De fato, eu havia notado poucos segundos antes daquele grito que algo de errado havia acontecido. O ônibus não parou alinhado ao ponto; ela, que solicitou a parada, não poderia descer daquele jeito com o veículo tão longe da calçada, não estava certo.
Quantas vezes já não tinha visto o mesmo problema acontecer. Quantas vezes eu mesma já não tinha passado por essa situação: ter que descer sem o apoio da calçada. Mas aquela mulher chamou minha atenção. O motorista seguiu, não quis saber por que ela não desceu, não parou em outro ponto logo adiante, não saiu do seu trajeto programado pela companhia de ônibus. Ele que dirige, que faz o papel de cobrador quando precisa, que aguenta os berros e xingamentos dos passageiros, transportados como um monte de carne amontoada, sem vida. Ele que enfrenta o trânsito horas a fio, de sol a sol, faça calor ou chuva, que carrega todas aquelas pessoas espremidas, que precisa parar para todos, mesmo que não tenha mais espaço. Ele que só estava trabalhando, cumprindo a sua rota, batendo o seu ponto, colocando comida na mesa. Ele que é gente como eu, que tem problemas, angústias e dores, ele que era o motorista não parou para a velha.
Ao contrário, respondeu, meio grosseiro, que só pararia no próximo ponto de ônibus da sua rota de destino. Eu continuei sentada, calada. Os outros passageiros continuaram também com suas vidas e ignoraram a senhora. Aquela mulher com a voz fraca, que gritou para ser vista. Nunca soube seu nome, nem para onde ia. Depois desse episódio a vi outras vezes andando sozinha pelas ruas do centro de Goiânia.
Naquele dia cinzento, coberto pelo mormaço, o motorista não havia parado para ela. Não tinha dado a mínima para sua dificuldade de andar, nem para o caminho longo que a mulher deveria enfrentar para chegar onde queria. Eu nada fiz, nem os outros dentro do ônibus, também observadores passivos. Ficamos todos parados, embasbacados, ensimesmados, pensando nos nossos próprios problemas, no nosso dia de trabalho, nas contas, nos prazos, nos horários. Menos na velha, não nela, não no outro que precisava de nós, ali naquele exato momento.
Do motorista também sei pouco. Naquele dia parou longe do meio-fio, distante do ponto em que deveria parar. A velha não desceu, era difícil para ela descer as escadas do ônibus, saltar na estrada e andar até o ponto, aquilo não estava direito. Quando a senhora gritou e pediu, ele não teve compaixão. Talvez nem soubesse que ela era velha, talvez nunca tivesse imaginado como é ser uma velha, sozinha e com as pernas fracas, a coluna curvada, o corpo pesado. Como é ter os ossos gastos, a pele ressecada, as pernas e as costas que doem constantemente. Doem de dor física e latente, mas também doem porque o tempo passou, porque ninguém para – ninguém, mesmo por um instante que seja para que ela, com a sua velhice, possa descer.
Por que eu não pedi para que o condutor parasse? Por que eu, ouvindo a negativa, não perguntei se ela precisava de ajuda? Por que eu não me atrasei um pouco para o trabalho e me ofereci para acompanhá-la, quando enfim o ônibus parou, tão longe de onde ela queria? Por que eu não fui capaz de compreender a velhice? Por que eu não tive compaixão? Por que não tive coragem?
Dentro daquele ônibus, naquele momento, éramos uma massa uniforme, incapaz de agir com e para o outro, de pensar como grupo. Alienados da nossa humanidade, da nossa capacidade de viver e conviver com outros humanos. Naquele momento éramos apenas indivíduos, em sua acepção mais egocentrada; despidos da nossa sociabilidade. Essa história aconteceu lá por volta de 2014 e 2015, já não me lembro ao certo. Nunca me esqueci dessa cena. Na época eu estava tão submersa nas minhas angústias, nos meus sonhos, nas minhas decepções, na minha solidão, na minha tristeza, que não consegui ver o outro, só eu mesma refletida no outro. Hoje, não sei dizer se agiria diferente. Mas já consigo contar essa história e lhe dar algum significado. Eu que me sentia rejeitada pela cidade e pelas pessoas, também estava sendo profundamente egoísta, rendida pelo cansaço e pela tristeza.
Eu, que sentada na poltrona do ônibus, sob o calor seco do cerrado, apreensiva com o meu dia de trabalho e com o meu próprio pranto, não tive coragem. Não tivemos coragem. O motorista cansado, explorado pelo patrão, humilhado, usando suas últimas energias para continuar a trabalhar, também não teve coragem. Os outros passageiros, meus desconhecidos, também não tiveram coragem. A velha andou sozinha, como cada um de nós observadores passivos.
A velha no ônibus me faz pensar em solidariedade, na palavra respeito. Nesse sentimento de se importar com o outro, na consciência de que a vida só faz sentido quando construída em conjunto. Em tempos de pandemia de Covid-19, quando completa-se 1 ano e quase quatro meses do meu isolamento, penso naquela senhora. Onde ela estará? Ainda vive? Ainda pega ônibus e desce no centro da cidade? Eu nada fiz por ela, ao contrário, ela muito fez por mim, mesmo sem saber. A sua velhice e a sua solidão me tocam ainda hoje. Quando vejo pessoas sem máscara e ouço “só pega Covid quem não é forte como eu”, como justificativa para não ter cuidado. Quando percebo que, nas escolhas de cada um, pesa muito mais o bem-estar individual do que o bem comum. Nesses momentos me lembro da velha e penso nessa incapacidade do autossacrifício, de pensar e agir como parte de um grupo social maior, nessa desumanização cotidiana de nós mesmos e dos outros. O que me resta é a esperança de que um dia teremos coragem e aprenderemos a nos importar.
Luísa Pereira Viana, 29, é de Santa Maria da Vitória
(BA), mas mora em Goiânia (GO) há 12 anos.
Formada em Comunicação Social – Jornalismo e
em História, faz mestrado em História pela UnB.