As novas donas do pedaço

As novas donas do pedaço

Pedro Alexandre Sanches

Ainda que vazada por uma quantidade impressionante de histórias trágicas, a linhagem de mulheres compositoras que emergiram até os anos 1960 mudou para sempre a cara da música brasileira. Marco inicial de paulatina transformação dos humores antigos foi o advento do sucesso pop de Rita Lee, a partir de meados dos anos 1970. O tom leve e despretensioso de “Ovelha negra”, “Esse tal de roque enrow”, “Jardins da Babilônia” (“eu, pra não ficar por baixo, resolvi botas as asas pra fora”, a moça avisava) e “Baila comigo” assinalou com sutileza e vagar um “alto lá” à rota ancestral de submissão e vitimização feminina na MPB.

Dos altares do samba, Dona Ivone Lara abandonou o trabalho de enfermeira em hospitais psiquiátricos para cantar que “alguém me avisou pra pisar nesse chão devagarinho”. E Leci Brandão moldou à revelia da indústria uma identidade artística brava e militante, em protestos como “Zé do Caroço”, que só ganharia notoriedade duas décadas mais tarde, na voz de Seu Jorge. Como Leci costuma lembrar, nas competições pela autoria de sambas-enredo do Carnaval carioca, ela sempre tirou o segundo lugar.

A década de 1980 chegou junto com uma nova e caudalosa geração de autoras. Foi quando conhecemos Angela Ro Ro, Marina Lima, Fatima Guedes, Joanna, Sandra de Sá, Tetê Espíndola, Teca Calazans, Jovelina Pérola Negra. Jovem veterana aos 10 anos de carreira, Baby Consuelo saiu dos Novos Baianos para criar samba-rocks num arco que viajava da lucidez de “O mal é o que sai da boca do homem” à graça abilolada de “Cósmica” e “Telúrica”.

Por entre encrencas policiais de Ro Ro, maluquices de Neusinha (filha de Leonel) Brizola e sucessivas conversões místicas de Baby, ainda veríamos Marina sangrar em público uma profunda depressão. Dores à parte, nem parecia, mas os tempos de bruxas ardendo em fogueiras em formato de tela de TV ou página de jornal começavam a ficar distantes – a permanência de Angela e Marina pode atestá-lo.

Um senso novo de discrição orientou a presença das próximas compositoras: Paula Toller, Dulce Quental, Fernanda Abreu, Vange Leonel, Laura Finocchiaro, Ná Ozzetti, Adriana Calcanhotto. Essas fermentaram o impacto com que receberíamos, anos 1990 à frente, cantoras-compositoras como Marisa Monte, Zélia Duncan, Fernanda Takai, Teresa Cristina, Pitty, Ana Carolina. Essa última amealhou os graus mais elevados de empatia junto à massa e, talvez por isso mesmo, de hostilidade disparada de camadas mais, digamos, intelectualizadas do público consumidor. Em “Tá rindo, é?”, do novo álbum, N9ve, Ana ironiza o amor & ódio que desperta: “A minha oração é bem curta pra não entediar o santo”.

Termino o passeio distraído por essa longa e acidentada alameda para chegar ao ano de 2009, e a uma surpreendente contestação. O Brasil produz, neste exato instante, uma avalanche formidável de novas compositoras-cantoras. Senão, vejamos.
Partamos dos levantes femininos coletivos (e anárquicos) do Cansei de Ser Sexy, em terreno roqueiro, e da batucada de brancas, mulatas e japonesas doidas de energia do Samba de Rainha. O ano de 2008 foi delas e, mais ainda, da revelação Mallu Magalhães, jovem demais e inflada demais pelo jornalismo e pelo marketing movidos a modismo. Já neste 2009, Tiê, outra adepta da voga folk, oferece um contraponto a Mallu em Sweet Jardim, mínimo e discreto a ponto de causar nervosismo. “Como um brotinho de feijão foi que um dia eu nasci”, cantarola em “Passarinho”, aparentemente avessa à overexposição.

Mariana Aydar assina três canções de Peixes Pássaros Pessoas, sob o pseudônimo Kavita, e se confessa ressabiada em “Palavras não falam”: “Eu não escrevo pra ninguém / (…) por mais que eu tente / são só palavras”. Igualmente cautelosa é Roberta Sá, autora eventual por ora escondida na versão convencional ao vivo do inspirado Pra Se Ter Alegria.

Dona de forte figura, Céu tem atraído atenção pela força interpretativa tanto quanto pela carga autoral confirmada no segundo disco, Vagarosa. Em “Comadi”, ela dispara, tão casual quanto pontuda: “A cumadi é ponta-de-lança / às vezes se amua com tamanha herança / a pupila nada nos óio raso d’água / mas cair não cai”.

Ana Cañas surgiu vestida de pose de diva emepebista jovem, mas se destaca de 2009 com o roqueiro Hein? e uma postura mais para o malcomportado que para o “diva-garoso”. “Eu não sei por que eu fui nascer / (…) eu só sei que agora eu vou ficar / só pra desestabilizar”, brada em “Na multidão”.

O espectro é largo suficiente para abrigar a agressividade rouca da roqueira Luciana Pestano, em Tigra, e a suavidade emepebê de Ceumar, em Meu nome, e Vanessa Bumagny, em Pétala por pétala. “Jabuticaba madura / quando não cai do pé / fica brilhando só, dá uma vontade / de saber o que é”, escreve Ceumar em “Jabuticaba madura”, e parece que a jabuticaba é ela.
Possivelmente a mais estabelecida entre as compositoras de hoje, Vanessa da Mata obedece a ditames de mercado e se limita a um Multishow ao Vivo, que brilha pelo talento já bem conhecido de “Viagem” e “Fugiu com a novela”. Em polo oposto surge Maria Gadú, que, dona de desconcertante juventude, evoca a saudade da não compositora Cássia Eller num CD de estreia homônimo coalhado de inevitáveis imaturidades, mas transbordante de beleza na delicadeza cheia de arestas de “Altar particular”. “Tu tome tento com meu coração”, alerta.

No final, ela verte à MPB e à quase-autoria própria o hit pop “Baba”, da também compositora Kelly Key. O estratagema a esta altura é manjado, mas importa aqui o interesse da menina em borrar limites entre leve e pesado, entre o pop de consumo e a solidez, entre pop “pobre” e pop “rico”.

Do outro lado do espelho de Gadú estão Deize Tigrona, Tati Quebra Barraco, Gaiola das Popozudas e uma legião de funkeiras semianônimas e mais parecidas com você e comigo do que supõem nossos umbigos cicatrizados. Falastronas e praticantes por vezes de agressividade musical simétrica à do carcomido machismo (“estou podendo pagar motel pros homens, e isso é o que importa”), elas são as reais donas da revolução nestes primeiros anos 2000.

Fabricam seus próprios produtos, proclamam independência e autonomia a cada verso, fascinam e incomodam as classes médias e “altas”, irritam quem entende música com base em preconceitos e ideias prontas. A arte que criam é abissalmente distante dos tempos em que a música feminina subia o morro carregando lata d’água na cabeça. E é a soma desconcertante de tudo que nos ensinaram nossas Chiquinhas Gonzaga, Maysas Matarazzo e Ritas Lee.

pedroalexandresanches@gmail.com, www.pedroalexandresanches.blogspot.com

(1) Comentário

  1. Muito bom texto, excelente como semrpe. Mas queria fazer o meu depoimento com relae7e3o a isso. Percebo sim, tudo isso acontecendo, mas se3o ve1rios acontecimentos paralelos em mundos diferentesa, em momentos diferentes, por que imagino um sistema isolado, por exemplo: um ser qualquer. Este se encontra em um grau evolutivo diferente dos demais ate9 por que o seu vizinho tbm passa pela mesma situae7e3o, mas com enfoques diferentes. Pra ser mais claro, seria como ve1rios alunos na mesma classe, sendo um bom em mateme1tica, mas ruim em portugueas. Outro bom em quedmica, mas ruim em fedsica, e assim por diante. Depois precisamos analisar todas essas facetas do aque1rio, sabendo que existem muitas varie1veis ontribuindo ou prejudicando o modus operandi de cada ser, por que cada um tre1s uma bagagem diferente, e que por isso possui determinadas abilidades e outros ne3o; coisas da cognie7e3o. logo precisamos entender cada um em sua especificidade como ser e como elemento participe do ambiente (aque1rio). Tal como o velho ditado: o sol nasce para todos, mas cada um absorve de forma diferente. Estamos no mesmo barco, mas o que cada um vai pescar depende de muitos fatores.

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