As doenças sociais em delírio

As doenças sociais em delírio

 

Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de abril de 2021 é “cura”


Há cinco anos adquiri uma doença social delirante. É uma coisa estranha que nos corrompe de forma contínua, por dentro e por fora. Sofri golpes no estômago, nos rins, no intestino, no cérebro e no coração. Senti a mente, o espírito e o corpo se deteriorando. Foi uma doença sem precedentes, apesar dos repetidos sinais que apareceram ao longo dos cinquenta anos antes de a doença ter se apossado em definitivo de mim.

Eu não estava preparado para aquela situação inusitada. Lembro do primeiro delírio que tive em uma clínica médica em Brasília, DF, quando vi na televisão um amontoado de reportagens sobre fragmentos de conversas por telefone entre políticos brasileiros, enquanto aguardava o atendimento médico. A cada pedaço de conversa repetida, mais se culpabilizava os falantes e mais simulacros eram criados em torno do que realmente havia acontecido.

Na clínica havia uma senhora que falava sem parar. Ela tentava captar meu olhar para que eu lhe desse razão. A mulher criou controvérsias querendo o apoio de todos. Eu olhava para a televisão, mas não olhava para ela, pois já estava com os ouvidos estressados por aquela doença que se aproximava.

Em casa não parava de pensar naquela situação tão adversa, de como a mulher falava e eu não tinha argumento para me pronunciar. Enquanto isso, o sistema imunológico iniciou o processo de deterioração: a doença havia se fortalecido, e os delírios começaram a ficar mais intensos.

Daquele momento em diante, mais dores e infortúnios surgiram. Pelas redes sociais uma enxurrada de postagens misóginas, machistas e racistas se espalhava. Personalidades bizarras passaram ao patamar de influenciadores digitais, o que gerou uma avalanche de desinformação, cancelamentos e discursos de ódio. Aqui meus órgãos vitais não se comunicavam mais entre si.

Como pensar em cura em uma situação desta?

E foi na televisão que, dias depois, assisti a um grupo de homens e mulheres decidir o destino de toda gente (eram centenas deles). Eles esbravejavam tudo de ruim que era possível ouvir. Chamavam o nome de Deus e debochavam dos outros com cartazes irônicos e sarcásticos.

Nas ruas havia um grupo de pessoas vestidas de verde e amarelo reivindicando para si a posse do Brasil, havia os dançarinos mascarados gravando videoclipes para serem transmitidos em plataformas digitais, havia os que vestiam camisas dos influenciadores digitais e os que achavam que defendiam a democracia, enquanto a democracia entrava cada vez mais em colapso.

De uma doença que parecia simples no início, passei para uma unidade de tratamento semi-intensiva. A cada momento um órgão do corpo físico desfalecia. Com os órgãos quase parados, e a mente em estado de confusão, fui parar na UTI em novembro de 2018 com o pensamento em completo delírio.

Tudo que eu ouvia falar sobre essa doença, que parecia algo distante, sobreveio sobre meu ser em forma de alucinações. Tudo aquilo estava dentro de mim, e eu nem percebia mais. O escárnio, o desrespeito e a barbárie se apossaram de minha alma a partir daquela data, enquanto eu adormecia em estado febril na UTI.

Senti de tudo: dor de barriga, enxaqueca, tosses, espirros, calafrios, vômitos, dor de dente, dores na coluna, erupções na pele, alergias respiratórias… Mas, como dizia os Titãs, “O pulso ainda pulsa”.

A situação ficou pior do que as misérias que saíam da caixa de Pandora, e não havia como vislumbrar nem faíscas de esperança no fundo de minha existência física, psíquica e social. O delírio chegava ao estado mais crítico. Estes tipos de delírios são piores que pesadelos, pois dos pesadelos talvez possamos acordar.

Já me sentia como o personagem de Drummond no conto plausível Crime e castigo. Eles se repetiram tanto e tantas vezes. Eles mentiram em tantas ocasiões que parecia que tudo era verdade.

E então notei que, na própria doença, poderia haver cura, um anticorpo dialético, que se rebela contra o estado de coisas e diz: Vou existir, vou resistir!

Do fundo do delírio ouvi uns versos de Lulu Santos a me dizer:

 E toda raça então experimentará

Para todo mal, a cura

E a cura virá com a verdade, a verdade que vem da vida.

 

Cleonilton Souza, 57, é educador e vive em Salvador, Bahia.

 

Deixe o seu comentário

TV Cult