Culpa do desejo!
Lugar de Fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de maio de 2021 é “desejo”
Flocos ou napolitano. Não sei. Calça ou short. Também não sei. Quero ambos. Quero todos. Só posso um. Se não consigo sequer escolher o sabor de sorvete ou o tipo de roupa, quem dirá o amor, a profissão, o destino? O que quer que seja, como quer que seja, preciso escolher, até porque, segundo Sartre, não escolher não deixa de ser uma escolha. A cada caminho corresponde um desvio. A cada desvio, uma culpa. Culpa do desejo: a bússola que me leva a todo e nenhum lugar simultaneamente.
Perco-me em mim mesmo. O desejo não é só meu. É seu. É nosso. Não é só atual. É histórico. É profético. O mais íntimo, o mais demasiado humano no humano é o desejo. Hegel, Freud, Kojève e Lacan falaram exaustivamente de desejo. “É humano desejar o que os outros desejam porque os outros o desejam.” Simples e complexo assim. O próprio neoliberalismo se aproveitou do desejo. Nos termos do que Margaret Thatcher disse: “A economia é o método. O objetivo é mudar o coração e a alma”.
Deu certo. Muito certo. Antes da pandemia, o happy hour fora do trabalho servia essencialmente para se falar do trabalho. Durante a pandemia, o home office, conforme o nome já diz, quebrou, finalmente, o limite que separava a casa do trabalho. Lembra o pai de Gregor Samsa em A metamorfose, de Kafka. O personagem nunca tirava o uniforme, nem em casa, como se, até ali, “estivesse sempre pronto para o serviço e aguardasse também a voz do superior”. Em outras palavras: não é a arte que imita a vida, mas a vida que imita a arte.
Por isso, Adorno e Horkheimer disseram que todos somos míseras peças da astronômica máquina econômica. Ela, totalitária, não dá folga a ninguém: seja no trabalho, seja no descanso. Descanso e trabalho, aliás, não se diferenciam mais tanto. Ambos obedecem à mesma estrutura e falam o mesmo idioma: eficiência, metas, utilidade e produção. Afetos, discursos e relações não são mais o que já foram. Tornaram-se lucro ou prejuízo, investimento ou desperdício. Curiosamente, inclusive eu deveria estar trabalhando em vez de escrever este texto. Como bom estudante de Direito, transgredi a norma: menos um ponto no meu saldo psíquico. Mais uma vez: culpa do desejo!
Kevin Gabriel Aoki Kobayashi, 25, mora
em São Paulo e é estudante de Direito.