Liberdade demais é perversão
(Foto: Reprodução Bansky/ Arte Revista Cult)
Lugar de fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de outubro de 2020 é “liberdade”.
Aos nove anos, corria solta pela praça da minha infância, pensando que ali podia tudo. Entre os passeios que contornavam o gramado, brotavam castelos e cresciam cidades onde galopávamos em cavalos feitos com cabos de vassouras. A praça continha o mundo. Hoje, quarenta anos depois, me pergunto se nesse nosso mundo ainda existem praças como aquela, pois crianças não mais se perdem por ruelas e nem correm soltas por aí. Nos sentíamos livres sem sequer saber o que significava liberdade. E hoje, que bradamos essa palavra aos quatro ventos, resta a certeza de que ela contém algo profundamente dúbio e ilusório.
Na antiguidade, perder a liberdade era a pena por ser vencido na guerra. Cidadãos eram os homens livres, únicos detentores de direitos. Mulheres e escravos tinham deveres; afinal, direitos não são para todos e mesmo que se pretendesse que o fossem, uns sempre tem mais que outros. No colonialismo, a necessidade de mão de obra fez festa com os negros. Os impérios e suas colônias permitiram-se apossar de seus corpos e almas; desumanizaram-nos, prenderam-lhes grilhões e até hoje há consequências dessa situação.
Onde há muita liberdade para uns, desaparece a dos outros, nos conta toda a história. Não há liberdade sem lei. Homo homini lupus é a frase de Plauto, popularizada por Thomas Hobbes e retomada por Freud. O homem é o lobo do próprio homem. As exigências civilizatórias fazem com que tenhamos que abrir mão de um pouco de liberdade em prol da convivência em comunidade. Em última análise, troca-se algumas satisfações por segurança. É o “contrato social”, desenhado por Rousseau. Através dele, desejos e liberdades de cada um sofrem restrições, a fim de que todos possam viver bem, conjuntamente.
O problema é que na prática isso não acontece assim. Alguns simplesmente não aceitam as restrições. Querem ter mais que os outros. Subjugam o semelhante, mantendo-o sob o seu domínio. E, para piorar, hoje em dia esse domínio perdeu o rosto e a ele todos estão, de alguma forma, sujeitados, pelas mais diversas estratagemas ditadas pelo capital e pela tecnologia.
Freud já apontara, em O mal-estar na civilização, que o homem não é exatamente uma criatura gentil, que apenas deseja ser amada, defendendo-se unicamente quando atacada. Não… ao contrário, somos dotados de uma imensa dose de agressividade. Por isso, o semelhante não é apenas um potencial parceiro ou objeto de desejo sexual, mas também alguém sobre quem essa agressividade pode ser descarregada; seu trabalho explorado sem compensação; alguém que pode ser abusado sexualmente sem consentimento, de cujas posses se pode apropriar; alguém que pode ser humilhado, torturado e morto.
Freud certamente não imaginou tudo isso: escutou, atentamente, seus pacientes. Hoje os fatos são facilmente observáveis na mídia, basta ligar a televisão. Queimam-se florestas, extinguem-se espécies, tudo para que alguém se beneficie das riquezas da terra vazia. Matam-se Marielles, negros, crianças… por interesse, perversão ou mero descaso.
Políticos falam o que querem sem nenhuma responsabilidade. Aqueles a quem cabe manter a ordem são justamente os que criam a desordem. Isso foge ao contrato social, combinação primeira e metáfora da criação da sociedade. É perversão o nome que a liberdade ganha quando vira o caldo, quando o limite some, quando o agir de um se transforma no atropelamento do outro.
Não há liberdade desmedida!
Margarida Viñas Ribeiro Lima, 49, é
psicanalista e psicóloga.
Mora em Porto Alegre, RS