Breve ensaio sobre a solidão

Breve ensaio sobre a solidão
(Foto: Bonnie Kittle/Unsplash)

 

Lugar de fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de agosto de 2020 é “solidão”.


Por muito tempo questionei se a solidão seria algo exclusivamente individual ou mais um fenômeno social que, por suas peculiaridades, não era facilmente entendida como tal. Em consulta a alguns dicionários, cheguei à definição de solidão como “estado de quem se acha ou se sente desacompanhado ou só; isolamento”. Não há momento melhor, então, para discutirmos a solidão, tendo em vista que estamos em isolamento social (ou pelo menos era o que deveríamos estar fazendo). Para acentuar o sentimento de solidão que muitos estão sentindo, o descompasso entre a noção de democracia, progresso e superação de velhos paradigmas, que voltaram para nos assombrar, dá à solidão um caráter coletivo que rasga a alma e machuca fisicamente.

O estudo da democracia nunca foi entendido em seu nível ideal ou, se foi, fez-se questão de não o exercitar de maneira adequada. Um dos aspectos mais fascinantes da democracia é a ampliação dos espaços de debates e a inclusão daqueles que estão, em tese e contingencialmente, distantes e impossibilitados de participar do debate político efetivo (o que detém, de fato, a mínima capacidade de gerar mudanças) nos velhos espaços, e a criação de novos espaços em que haja essa ligação de maneira mais efetiva. Participar da política não é uma escolha, todos estão sujeitos a processos políticos a todos os momentos, até mesmo eu, por estar aqui, só estou por um processo político que me proporcionou ler, estudar, compreender e escrever.

Apesar de essa discussão sobre o que se entende da democracia ter sido diversas vezes travada, vivemos um momento histórico que me causa arrepios e amplia a minha solidão coletiva. Há uma segregação de segmentos sociais que deveriam se unir como nação, e há a construção de uma narrativa em que a maioria é posta como uma hegemonia que deve ser resguardada, em contramão de todos os paradigmas que, em minha percepção, estavam superados e serviam hoje apenas para demonstrar os episódios horríveis em que meus similares sofreram, choraram e se sentiram sozinhos em meio a tantos iguais. Estava enganado, eles estão de volta, apesar de não serem bem vindos.

Eu sempre me senti sozinho. Às vezes, doía e incomodava. Mas, sempre que buscava uma solução para isso, lia que deveríamos transformar a solidão em solitude e seguir em frente como um super-homem, além-homem. Bom, eu usei de meus momentos solitários para me expressar com a música, com a escrita. É a forma que grito para o mundo que estou ali, que isso incomoda, no entanto, no mais das vezes, é como gritar sem ter voz, ninguém te ouve.

Acredito que esse sentimento é compartilhado com aqueles que não se encaixam no padrão social médio, seja em razão do gênero, da opção sexual, da classe social etc., mas transformar essa solidão em “solitude” não é uma escolha puramente daqueles que se sentem solitários. Seguir em frente como um além-homem nesses casos depende de muitas vontades políticas e da responsabilidade cívica com o que é certo, o que é justo.

A narrativa que vem sendo construída há um certo tempo, pautada no utilitarismo e no liberalismo, já é conhecida. No entanto, nenhuma dessas bases filosóficas é capaz de trazer ao centro da discussão o sentido, significado e a qualidade da vida. Para essas correntes, todas essas preocupações se situam fora do conceito de justiça. Michael J. Sandel, no livro Justiça, explana muito bem esse ponto, e a necessidade de incluir no debate político questões como a qualidade de vida e os direitos das minorias.

Não é fácil estar sozinho. Não é fácil virar o super-homem do nada. Mas discutir isso hoje em dia gera frisson. Para muitos, superar a solidão causada por anos de escravidão, ad exemplum e ad argumentandum tantum, é questão de esforço e mérito, apesar de sabermos que não é só isso. Discutir a solidão na perspectiva que se propõe é discutir, também, as bases fundantes do Brasil.

Alguns autores renomados remontam todos os problemas estruturais do Brasil às suas raízes, ou seja, “todos” os problemas que enfrentamos hoje teriam, em certa medida, para esses autores, origem em Portugal. Cito Raymundo Faoro, que definiu a estrutura patrimonialista do Brasil como um resultado da sua origem histórica, mas esqueceu os tantos anos em que as instituições brasileiras moldaram a cultura e o sentido cívico da civilização – instituições que, por sua vez, eram escravocratas, acostumadas a objetificação e a noção de sub-humanos.

A solidão coletiva não é algo novo. A solidão pode estar presente mesmo quando várias pessoas estão em um mesmo “cômodo”, mas são tratadas como invisíveis, como espaço, como lacuna. As ruas estão cheias de pessoas vazias de si. A falta de empatia e sentimento cívico sempre foram, aliados à ganância e à necessidade de poder, uma das causas de todas as segregações e discriminações negativas que vemos, sentimos, presenciamos.

Esquecer disso é aumentar o fosso existente, é ampliar a solidão coletiva e a solidão individual, por consequência.

A solidão pode ser sentida de várias formas e sentida como algo bom para alguns, o que se convencionou chamar de solitude. Eu mesmo aproveito vários episódios de solidão para imergir em meus pensamentos e trilhar um caminho em busca do autoconhecimento. Sei lá, às vezes acho até legal. No entanto, obrigar pessoas e segmentos sociais à solidão, na minha visão, se aproxima de uma penitência que deu origem a uma pena não existe, só na cabeça de quem segrega e afasta.

Para terminar a reflexão com um mecanismo que uso nos dias solitários, compartilhando um poema de minha autoria que escrevi na tentativa de refletir o sobre a solidão e individualidade e como as complexidades humanas podem ser incompreendidas:

Dentro de uma pele, um mundo.
Dentro de uma cabeça, um universo em profusão.
A única condição à qual nos submetemos é sermos sós em nossas peles e em nossos pensamentos.
O meio pelo qual vos falo é uma ilusão, não existe, engano-os.
Na realidade, estou calado, encorpado, preso em um pote cuja capacidade já se excedeu.

Manoel Cipriano de Oliveira Bisneto é escritor, poeta e concluinte
do curso de Direito da UFRN.

 

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