Voir la Via Láctea

Voir la Via Láctea
(Foto: Montvlov/Arte Revista Cult)

 

Lugar de fala é o espaço dos leitores no site da Cult. Todo mês, artigos enviados por eles são publicados de acordo com um tema. O de janeiro de 2021 é “perspectiva”.


Descobri recentemente que não há fotos da Via Láctea inteira, vista de longe. A explicação para isso é que nunca um objeto pôde se afastar tanto de modo a ter uma visão panorâmica de nossa galáxia e então fotografá-la. As imagens que existem por aí são meras montagens ou representações artísticas muito bem estimadas. O que vemos de verdade são só pedaços; lindos braços decepados pelo cosmos.

Feita à imagem da mecânica confusa do funcionamento do universo, nossa galáxia interior é puro caos. Toda vez que um bebê sai do útero, acontece um Big Bang. A partir daí, tudo são estrelas que nascem e explodem o tempo todo dentro de nós, definhando ou virando supernovas. Asteroides que se chocam, cometas que passam rapidamente e deslumbram, buracos negros que nos sugam de nós mesmos… vácuo. A vida é um pandemônio vista de perto. De longe, é só um pontinho brilhante passando lentamente na
imensidão do espaço. Silencioso… Não há som nele, assim como não há silêncio em mim. Eu, que moro na Terra que é dos homens; que fazem tanto barulho e querem ficar tão perto porque o silêncio e a distância lhes causa medo. Homens que violam o silêncio sagrado de outros homens e quando já não podem mais, hipocritamente querem sair da Terra para encontrar a paz. Eu, que também sou homem.

E sei que às vezes é preciso o afastamento de nós mesmos, que é para não enlouquecer. Mas pobre daquele que tenta abafar o barulho com uma música ainda mais alta. Que sempre precisa de balinhas para ver um universo inteiro se abrindo. Afastamento é só pra fingir que se está saindo do corpo. Pensar sobre o que se é às vezes é mais revelador do que se ver como se é. Mudança de perspectiva nem sempre desemboca na descoberta do extraordinário. O grande presente é vislumbrar o óbvio e o possível.

Agora é alta madrugada e finalmente eu posso vislumbrar meu caos em paz, silenciosamente. Sentada na cadeira, no jardim, tendo apenas a visão parcial de um céu que ora é límpido ora é nublado, eu consigo ver o
infinito e o que ficará depois de mim. Deslocar minha perspectiva de todo um universo que não compreendo (dentro e fora) para um pequeno espaço (em algum lugar) é uma graça. Ora, e que graça é ser uma pessoa! Como pessoa, penso até que talvez nunca seja possível afastarmo-nos dessa Via Láctea…

Mas que importa?! Que valor tem a foto de um todo universal, quando contemplar um pedaço de perto, à sua maneira, é tão mais interessante? Inteireza é vaidade. Organização plena é delírio. Sei que quase nunca é
possível voir la vie en rose, mas sempre dá pra voir la Via Láctea. Essa Via Láctea parcial, esse braço nebuloso onde moram mil cometas e estrelas. E a vida acontece – magicamente, caoticamente, em silêncio – à maneira
de quem vê.

Paola Romanova, 18, é cozinheira,
estuda psicanálise e escreve para
se sentir infinita

 

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