Dialética e experiência crítica

Dialética e experiência crítica
(Arte Andreia Freire)

 

Um dos eixos maiores da atualidade de um pensamento como o de Theodor Adorno se encontra no esforço sistemático de reconstrução da dialética. É próprio a Adorno defender que apenas um pensamento dialético seria capaz de lidar, ao mesmo tempo, com a dupla exigência de crítica e fidelidade às expectativas de emancipação social próprias ao projeto moderno. Pois só ele poderia criticar de maneira sistemática os conceitos normativos que constituíram o horizonte de nossas formas de vida, como liberdade, emancipação e autonomia, de modo tal a conservar o impulso transformador inicial que motivou suas aparições.

De fato, esta é uma aposta de risco. Ela se funda na defesa de que é próprio à dialética um peculiar “movimento do conceito” descrito como: “o emprego dos próprios conceitos de tal maneira, o seguir a coisa (Sache) de tal forma, o confrontar  o conceito com aquilo que se pretende dizer por meio dele até que se mostrem, entre o conceito e a coisa, dificuldades que forçam o conceito a se alterar através da continuidade (Fortgang) do pensamento, sem que, nesse processo, possa-se desistir das determinações que o conceito tinha originariamente. Ao contrário, tal alteração se realiza justamente através da crítica ao conceito originário – por conseguinte, mostrando-se que ele não concorda com sua coisa mesma, não importa o quão bem definida (wohldefiniert) ela possa parecer – fazendo justiça a tal conceito originário na medida em que o impulsiona mesmo assim a entrar em concordância com a coisa”.

Esta noção de movimento do conceito como desenvolvimento de uma contradição capaz de provocar alterações na adequação pressuposta entre o conceito e a coisa, entre normatividade e mundo, alterações que destroem as situações às quais tais conceitos pareciam inicialmente se referir, alterações que fazem mundos desabarem por uma força interna de transmutação própria a estes mesmos mundos, aparece a Adorno como a única forma de pensamento crítico possível para nossa época.

Mas esta crítica será, por sua vez, guiada por uma reflexão consequente sobre as condições para a recomposição da capacidade de ação. Nas mãos de Adorno, a dialética aparece como uma máquina de guerra contra perspectivas filosóficas, como a fenomenologia e o positivismo, que não estariam à altura de abrir o pensamento à ação efetivamente transformadora. Não, a dialética negativa não é uma estilização de paradoxos intermináveis ou uma mera resignação da impotência do pensamento diante da queda, como se repetiu em um mantra interminável. Ao menos para Adorno, ela é a única forma possível, a única forma própria a nosso tempo, de articular crítica efetiva e ação.

De fato, esta proposta de leitura não é moeda corrente. Mas o fato de uma operação filosófica como a dialética negativa ter sido objeto de tantas más leituras já diz muito sobre que tempo é o nosso e o que ele tem efetivamente dificuldade em pensar ou, ainda, onde está sua real dificuldade em agir. Por exemplo, há muitos equívocos a respeito do sistema de interfaces entre dialética hegeliana, dialética marxista e dialética adorniana. O mais recorrente deles consiste em organizar a relação a partir de pretensas distinções entre “dialética idealista” (outro nome para certa forma de delírio subjetivista do pensamento) e “dialética materialista” (muitas vezes confundida com mero historicismo, quando não com um empirismo ingênuo). Uma das maiores contribuições de Adorno talvez tenha sido exatamente mostrar como tais distinções eram mal construídas, fruto de leituras apressadas ou que deviam ser historicamente contextualizadas. Nestes casos, não se entendia nem o que era dialética, muito menos o que era materialismo. O máximo que se fazia era reeditar a crítica milenar às “ideias” da parte dos que pretensamente teriam olhos para entrar em contato direto com o mundo. Melhor seria, como bom dialético, levar distinções mal postas a seu ponto de colapso. É isto o que Adorno fará de forma sistemática.

Notemos ainda que esta estratégia de apresentar o debate sobre a filosofia adorniana através da discussão a respeito do seu conceito de dialética se justifica atualmente, entre outros, por uma razão interna aos desdobramentos da Escola de Frankfurt. Insistiria que os desdobramentos posteriores da Teoria Crítica abandonaram toda perspectiva efetivamente dialética, resultando em uma filosofia que preferiu estabelecer como interlocutores privilegiados o neopragmatismo anglo-saxão, a psicanálise baseada na teoria de relação de objetos, assim como um modelo de justificativa social que elevava o sistema de consensos construídos no interior do dito Estado do bem-estar social a horizonte normativo insuperável de racionalização da vida em sociedade. Escolhas mais afinadas com o projeto de fundamentar a razão em um horizonte de ação comunicativa.

Não é mero acaso, nem fruto de alguma forma de inabilidade estilística, que a dialética tenha sido vista como um escândalo por todos os que gostariam de fundar a razão em um espaço comunicacional desimpedido. Comunicação é resolução potencial de conflitos a partir da recognição mútua de condições de conciliação atualmente postas. Não é este o horizonte real do pensamento dialético, baseado na análise de transformações de estrutura a partir do reconhecimento da força produtiva de contradições internas. Uma dinâmica de transformações de estrutura não dará espaço para a naturalização de solos estáveis de consenso, mas se voltará exatamente contra a crença de que há um solo normativo pressuposto e partilhado, solo anterior às dinâmicas de conflitos, pois capaz de regulá-los. Este verdadeiro déficit de dialética na Teoria Crítica pós-adorniana trouxe consequências decisivas para a própria noção de crítica, assim como para a noção de quais são seus objetos e sua real extensão. Há várias formas de “reconciliação extorquida” e a dialética consequente saberá recusar todas.

Coloquemos uma hipótese a respeito desta guinada da Teoria Crítica. Ela diz respeito à solidariedade entre pensamento dialético e ação revolucionária, tão decisiva para Marx e nunca de fato abandonada por Adorno. Tal abandono pode ser claramente encontrado em Horkheimer, não em Adorno, como fica claro na discussão entre os dois a respeito da possibilidade de redação de um novo Manifesto. O famoso aforisma de Adorno: “a filosofia que um dia pareceu ultrapassada mantém-se viva porque se perdeu o instante de sua realização” é, a sua maneira, fiel à indissolubilidade entre dialética e revolução. As experiências revolucionárias do século 20, que apareciam como o instante da realização da filosofia e sua ultrapassagem enquanto “mera” filosofia se perderam, passaram no seu oposto. Se a filosofia mantém-se viva, é como o pensamento que conserva o impulso de sua realização e de sua força de transformação apesar do seu fracasso. A filosofia aparece como pensamento que não pensa apenas seu fracasso, embora não recuse deter-se diante dessa tarefa, mas que principalmente medita sobre a astúcia para a realização dos processos de revolução social.

Marx podia, em 1846, clamar o momento de ultrapassar as interpretações do mundo porque sentia a iminência de uma experiência revolucionária, tal como ocorrerá em 1848. Adorno afirma, em 1966, que a filosofia estava viva porque não via iminência alguma enquanto a dialética não se mostrasse, de fato: “a altura do que é heterogêneo” e não penetrasse em novos sujeitos políticos emergentes. Pois essa modificação no modo de pensar seria condição para a emergência de novos sujeitos na práxis. O pensamento dialético pede a emergência de novos sujeitos, da mesma forma que Hegel compreendia que o desenvolvimento da dialética modificaria a consciência até o ponto em que ela não seria mais consciência, até o ponto em que o pensamento não seria mais pensamento representacional, mas Espírito que unifica pensar e ser. Há em Hegel uma emergência do Espírito como sujeito dos processos históricos. Esta dinâmica de emergência está também presente em Marx, agora através de uma guinada em direção à nomeação de um sujeito concreto dotado de força de transformação estrutural da sociedade, a saber, o proletariado. A dialética se realiza através da emergência de um sujeito que age de maneira dialética. Pois a emergência do proletariado não é apenas a constituição de atores políticos que exigirão novas formas de redistribuição de bens e riquezas. Ela é a produção potencial de outro modo de existência, capaz de fazer a negatividade passar ao ser abolindo as determinações por propriedade, capaz de eliminar o primado da representação, capaz de desarticular o primado da identidade. O proletariado é, acima de tudo, um modo de pensar por despossessão, não mais um modo de pensar por determinação de propriedade.

Digamos, pois, que a exigência de emergência de novos sujeitos não desaparece em Adorno, ela se complexifica devido à interpretação de uma série de coordenadas histórico-sociais ligada ao colapso do proletariado como classe sociológica e à dificuldade de constituição de dinâmicas de consciência de classe devido ao advento da indústria cultural.

Um exemplo dramático desta tensão será fornecido por maio de 68. Adorno sentirá maio de 68 na Alemanha (pois sua análise é eminentemente local) como um conjunto de ações atravessadas tanto pelo reconhecimento acertado do intolerável da situação atual quanto pela incapacidade de avançar sem resvalar na submissão do pensamento à tática, à submissão dos meios aos fins, à tecnicização simplificadora própria ao discurso militante. Principalmente, Adorno insistirá na incapacidade do movimento estudantil agir sem saber lidar com o enorme potencial fascista na sociedade alemã que seria desperto como força reativa. Incapacidade que levaria a flertar, em reação desesperada ao aparecimento de um sujeito reativo, com uma noção de ação direta que fecharia ainda mais a sociedade alemã a transformações reais.

Note-se que as críticas de Adorno, por mais que possam ser atualmente questionadas, estavam longe de expressar uma reação conservadora. Elas eram feitas porque, ao menos aos seus olhos, não sairia revolução alguma de maio de 68. Hegel, à sua maneira, dizia que o jacobinismo se autodestruiu porque lhe faltava dialética, faltava-lhe entender que negatividade dialética não é negatividade simples. Não é uma posição muito distinta da de Adorno diante de maio de 68. Pode-se criticá-la sob vários aspectos, mas seria injusto ignorar que ela é sensível a problemas reais que merecem reflexões reais.

No entanto, diante desse impasse (que só poderia terminar de forma dramática tanto para Adorno quanto para os estudantes), a Teoria Crítica preferiu abandonar o que seria a tarefa exigida pelo tempo histórico, a saber, aprofundar a reflexão sobre a dialética necessária para as potencialidades revolucionárias do presente, aprofundar a reflexão sobre processos de emergência. Ao invés disso, seus seguidores, animados pelo medo do que aparecia a alguns como “fascismo de esquerda” (expressão colocada em circulação pelo jovem Habermas), acabarão por abraçar um projeto político muito mais desinflacionado de aspirações de transformação. A filosofia que precisa manter-se viva para lembrar a potência do que ainda não foi realizado e dos sujeitos que virão dará lugar à análise dos potenciais imanentes às estruturas de interação já em operação nas esferas de reprodução da vida social. A solidariedade entre filosofia e revolução, solidariedade que, como dizia Freud a respeito da razão, pode falar baixo mas nunca se cala, será cortada de vez no interior do pensamento frankfurtiano. Ela simplesmente desaparecerá como questão relevante para uma reflexão político-filosófica. Até mesmo a crítica totalizante da sociedade capitalista implacavelmente feita por Adorno será vista, muitas vezes, como mera expressão de um niilismo sem freios, elitista e aristocrático. Por isso, há de se começar por lembrar que recuperar a dialética adorniana nunca será uma operação anódina em suas consequências.

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