Visões do romantismo

Visões do romantismo
Antonio Candido no seminário acadêmico, falando sobre Sérgio Buarque de Holanda (Foto Francisco Emolo /Jornal da USP)

 

O livro O romantismo no Brasil (2002)de Antonio Candido, editado pela Humanitas, foi redigido entre 1989 e 1990. Modestamente proposto pelo autor como resumo e a despeito de ele ter eleito como público-alvo alunos de graduação, engana-se quem tomá-lo como mera abreviação de Formação da literatura brasileira. Trata-se de documento imprescindível aos que se interessam por acompanhar a constituição e as metamorfoses do pensamento de um dos maiores intelectuais e críticos literários do país.

Em Formação da literatura brasileira (1959), Candido faz um balanço do romantismo como um todo, tendo em vista a formação do sistema literário, destacando sua relação com a sociedade. Tomando por fio o desejo dos brasileiros de dotarem o Brasil de uma literatura equiparada às europeias, procura traçar a continuidade e as diferenças entre arcadismo e romantismo, mas também entre o universal e particular, observando a poética de cada escritor a partir dos aspectos mais gerais da teoria romântica. Sua reflexão sobre o século 19 não se esgota, entretanto, com aquele livro, acompanhando-o desde então. Nos textos ensaísticos posteriores, encontram-se uma retomada e um aprofundamento da discussão sobre questões mais específicas da teoria romântica.

Além dos inúmeros prefácios, introduções a obras do período e nas resenhas e ensaios de periódicos, Candido retoma o romantismo em alguns livros. Em Literatura e sociedade (1965), o artigo “A literatura na evolução de uma comunidade” analisa não a conformidade, mas os revezes com que se relacionam os três eixos (autor, obra e público) do sistema literário produzido pelos autores de São Paulo, desde o século 18 até o 20, num país em que a violenta contradição sempre dificulta a democratização da leitura. Na passagem em que trata do relacionamento dos românticos com seu público, define-a como uma sociabilidade específica, em que o leitor, destacando-se da comunidade, torna-se o próprio grupo de escritores, ao mesmo tempo produtor e consumidor.

No final da década de 1980, a propósito de um evento comemorativo, Antonio Candido ministra em Assis um curso sobre os pressupostos teóricos da estética romântica, ressaltando a contradição como um de seus traços mais fundantes. Esse curso encontra-se gravado em fitas cassetes, circulando de mão em mão. Dada a raridade de textos, no Brasil, dedicados a explorar os pontos mais teoricamente complexos desse período, a não edição dessas fitas em livro só tem contribuído para dificultar a abordagem didática e a pesquisa do assunto.

Tal como nesse curso, a concepção do romantismo como uma estética fundamentada na contradição e na negatividade orienta também as diretrizes de “Cavalgada ambígua” (Na sala de aula, 1985) e “A educação pela noite” (Educação pela noite, Ática, 1987). Nesses textos, o profundo domínio dos temas, das técnicas e da filosofia do romantismo leva o crítico a destrinçar a obra de Álvares de Azevedo, modificando a interpretação corrente que a concebia como produto de um estudante rebelde, com pouco ou nenhuma influência sobre sua época. No primeiro desses artigos, a leitura do poema “Meu sonho” como uma balada que, retomada da tradição, teve sua forma, originalmente narrativa, adaptada à subjetivação da linguagem e à fragmentação do sujeito lírico, desencadeia uma reflexão sobre as relações desse escritor com a tradição literária. No segundo artigo, a descoberta, condizente com a linguagem e o pensamento poético desse autor, de que Macário e Noite na taverna não são textos apartados, mas estruturalmente concebidos como peças complementares, faz brotar uma discussão sobre o nacionalismo dissonante em Álvares de Azevedo. Mas, aí, destaca-se sobretudo a indiferenciação entre as fronteiras dos gêneros, naquelas obras, proporcionada pela justaposição de toda sorte de associações, pela extrema prolixidade e pelo abuso das digressões, gerando a bifurcação e o emaranhamento do fio da história e, assim, sua falta de unidade e a forma fragmentária.

Em O romantismo no Brasil, Candido traça novamente um balanço desse período, incorporando suas reflexões, cristalizadas nos ensaios e naquele curso, sobre a concepção romântica, a história e a sociedade da época. Disso resulta uma compreensão inovadora do modo específico pelo qual o romantismo brasileiro também realizou modificações – em andamento na Europa desde o século 17 – na história da teoria literária ocidental.

Já desde a Formação da literatura brasileira, nas passagens que abordam a literatura do momento pré-Independência, a constatação da precariedade desse período literário não é suficiente para impedir que o crítico detecte o processo de uma significativa mudança no perfil do letrado da época. De acordo com ela, os intelectuais oriundos da tradição colonial recrutavam-se entre padres e bacharéis, identificando-se com os interesses da Colônia e adotando, diante das ações políticas dos governantes, uma posição passiva e laudatória que lhes proporcionava a permanência em cargos oficiais e a detenção de prebendas. Com a independência virtual gerada pela transferência da Corte, mas também com o aumento considerável de brasileiros que já haviam travado contato com os estudos científicos da Reforma de Pombal, o intelectual muda de perfil. Passa a reivindicar o direito de crítica, adota a razão e o sentimento cívico, o que o impele a procurar se engajar politicamente, desenvolvendo uma ação ora diretamente participativa, voltada para a iniciativa de estabelecer as reformas políticas, militando em rebeliões do período, como Natividade Saldanha e Frei Caneca, ora indiretamente, redigindo jornais com artigos de análise política, como a de Hipólito da Costa, no Correio Brasiliense.

Em O romantismo no Brasil, todo o período que vai de 1836 a 1870 é visto como um conjunto compacto, heterogêneo e complexo, cujo fio de acompanhamento cronológico é fornecido, mas não só, pelos esforços voltados para criar, via literatura, o sentimento de identidade nacional. Ao lado desse critério e com o mesmo grau de importância, Candido destaca também as diversas e múltiplas contribuições de cada um dos grupos que, apenas traçando programas de nacionalização, realizando-os na prática literária ou mesmo desestabilizando-os, adotaram funções distintas para consolidar os pressupostos temáticos, técnicos e teóricos da estética romântica. Assim tomados em conjunto, esses grupos designam três “veios que se interpenetram: (1) os traços que prolongam o período anterior; (2) os traços heterodoxos; (3) finalmente os que se podem considerar específicos, e são os que em geral o crítico e o historiador isolam do conjunto”.

O grupo formado por Gonçalves de Magalhães, Pereira da Silva e Manuel de Araújo Porto Alegre etc. comparece como responsável menos pela fundação da literatura brasileira do que pela da crítica literária no Brasil. Defendendo o pressuposto de que aqui teria havido, desde sempre, uma literatura própria, o grupo concebe os princípios de sustentação de tal concepção, apoiando-se, no caso de Magalhães, nas idéias de Friedrich Schlegel e de Ferdinand Denis, valendo-se ainda das discussões, em Paris, entre Almeida Garret e Porto Alegre. A partir daí, “inventa”, num termo de Candido, uma história da literatura brasileira que “entronca o passado no presente”, definindo a pauta da renovação por meio da adoção de temas como a natureza brasileira e a cultura indígena, pelo abandono, ao menos em tese, da norma neoclássica e pela delimitação da literatura com função eminentemente religiosa. A esse grupo, no entanto, especialmente a Magalhães, “caso interessante de renovador sem força renovadora”, coube um papel meramente programático. Destacando a ação reformista do grupo, Candido compreende-a pela tentativa de evitar choques com a cultura palaciana que, por sua vez, conferiu àquele um ar de “respeitabilidade”, limitando a renovação quase exclusivamente ao objetivo de criar o sentimento de identidade nacional, distanciando-a, com isso, do romantismo mais radical.

Os grupos que se inserem entre 1850 e 1860 configuram-se, afinal, como efetivos inauguradores do romantismo e da literatura brasileira, para além dos programas e intenções. A alta qualidade literária das poesias de Gonçalves Dias e seu êxito poético na plasmação do indianismo confirmam-no, isoladamente, como principal consolidador da renovação pela via do nacionalismo, posição esta conquistada graças à abordagem do índio não do ponto de vista etnográfico, mas transfigurando nele “os sentimentos e as emoções comuns a todos os homens”. Por outro lado, se a Gonçalves Dias coube a felicidade de viabilizar em versos de alto nível poético os temas reputados nacionais, fazendo coexistir arcaísmo e modernidade, concomitantemente e ao lado dele, o grupo formado por Álvares de Azevedo e Bernardo Guimarães, mas também Sousândrade, torna-se responsável por outro tipo de romantismo, contrário ao indianismo e inaugurador de uma expressão mais livre, marcada pela contradição, pelo aguçado espírito crítico e pela literatura obscena e irreverente. Tomando o indianismo como convenção vazia e negando a autonomia da literatura brasileira, Álvares de Azevedo alia análise, crítica e sensibilidade numa obra programaticamente versátil e num estilo que se aproxima do prosaísmo do cotidiano, confirmando-se como um poeta ao mesmo tempo genial e desigual. Já em Bernardo Guimarães, o espírito de negação é observado na poesia pantagruélica, cômica, grotesca e obscena. Ao lado da de Sousândrade, essa poesia introduz, para Candido, o livre-associacionismo na literatura brasileira, retomado posteriormente pelas vanguardas, criando um “importante jogo poético: a livre combinação de palavras e o direito de elaborar projetos gratuitos”.

Além dos critérios de acompanhamento dos autores e obras, acima abordados, o crítico transita, com igual pertinência, pelas mais diversas esferas, da literatura para a política, desta para o social, deste para o cultural, novamente para a literatura e assim por diante. É a interpenetração entre essas esferas que lhe permite restabelecer as relações entre o tempo e o ambiente letrado. Se o entusiasmo pós-Independência favoreceu a que os letrados, reunidos em torno da revista Niterói, procurassem empreender a definição dos pressupostos de nacionalização da literatura, a partir de 1850, a glorificação da poesia e do romance de costumes, enfim, da voga indianista e, no mesmo passo, as críticas da mocidade reunida em torno da Faculdade de Direito de São Paulo, todo esse momento de riqueza literária coincide com o golpe da Maioridade, com a estabilização da política imperial e com a modernização econômica, levando às primeiras tentativas de extinguir o tráfico negreiro e ao investimento do capital excedente no país. A partir de então, a rotinização de temas e técnicas românticas pela obra de Casimiro de Abreu e Fagundes Varela, coexistindo com a novidade introduzida pela invasão da melodia nos versos, deságua nos esforços de Castro Alves de conferir sobrevida ao romantismo. Dinamizando o verso por meio de antíteses e rompendo com o masoquismo lamuriante, absorve o ânimo abolicionista e republicano de seu tempo, acentuando o toque social na literatura, já trabalhado nos romances de Joaquim Manuel de Macedo e aperfeiçoado por José de Alencar. Mas a pá de cal chega definitivamente com a campanha anti-romântica de Sílvio Romero, mas também com Franklin Távora, num momento em que a Monarquia já dava seus últimos suspiros. Ainda que construindo romances de qualidade inferior, Távora põe em xeque a unificação da identidade nacional, condicionando uma abertura que impele a literatura a absorver a diversidade da paisagem física e social do nordeste.

Em outro critério de acompanhamento do período, após cada autor tratado, O romantismo no Brasil destaca o modo de circulação dessas obras entre o leitor comum e a contribuição delas para a democratização da literatura brasileira. Entre 1860 e 1870, a poesia e a prosa romântica abrem-se para incorporar, ao lado da transfiguração do dominante branco “civilizado” e do selvagem, também o sertanejo e o negro. Apesar da complicação folhetinesca dos enredos de Joaquim Manuel de Macedo, seu maior mérito consistiu em adaptar a narrativa à sensibilidade moderna, descrevendo lugares, hábitos e o tipo de gente do dia-a-dia, combinando enredos folhetinescos com “ficções de grave conteúdo social”. Em José de Alencar, o romance refina-se menos pela tentativa de criar uma linguagem adequada à fala do cotidiano, propalada por este autor na polêmica sobre A Confederação dos Tamoios, de Gonçalves de Magalhães, do que por ter alcançado construir narrativas que se dotam de “força realista, nas quais não apenas traça com o devido senso da complexidade humana o comportamento e o modo de ser dos homens, e sobretudo das mulheres, mas revela por meio deles certos abismos do ser e da sociedade”. A diferenciação dos tipos humanos pela incorporação do sertanejo, nos romances de José de Alencar e Bernardo Guimarães, amplia-se com a sátira de Luis Gama, denunciadora da ideologia da brancura, e com o espírito messiânico de Castro Alves.

Como parece ser praxe entre pensadores do porte de Antonio Candido, a surpresa na leitura que atravessa cada página deriva, de um lado, da argúcia do raciocínio que, analogamente ao de T. W. Adorno ou Walter Benjamim, impele o leitor a se deter nas questões propostas. Mas o impacto da leitura surge também da constatação de que, em Candido, a abordagem do objeto não se esgota em si mesma, tornando-se também fonte de reflexão sobre o significado histórico da prática romântica, casada com um diálogo com o tempo presente da enunciação. Neste, o pressuposto de originalidade nacional e de separação entre as literaturas europeias e a brasileira não passam, numa palavra de Candido, de ilusão, já que esta àquelas pertence desde sempre. Entre essas ilusões, o índio, dotado de virtudes arbitrariamente postuladas, adquire a função de encarnar a imagem ideal da originalidade nacional. Revestido com essa idealidade, o aborígene pairava, não obstante, acima das particularidades regionais, desviava a atenção da mestiçagem com o negro, ajustando-se perfeitamente ao mito de um passado glorioso, apto a reforçar o sentimento de identidade. No mesmo passo, a exaltação da natureza local funcionava como uma compensação da ausência de uma ilustre tradição que, na Europa, marcava-se por uma história de batalhas e por suas catedrais e literaturas multisseculares.

Desfazendo as ilusões de originalidade nacional, Candido destaca como o desejo de autonomia, entre os românticos, funcionou, na prática, como viabilização do processo de particularização e prosaicização da literatura, em voga na Europa já desde o romance inglês do século 18. Se, pela via individual, esse processo gerou o culto à sensibilidade e a subjetivação da linguagem, pela via coletiva favoreceu a que a literatura brasileira aproximasse temas e linguagem do dia-a-dia. Isto posto, o crítico retoma todo um repertório de imagens, ritmos, tons e formas literárias transplantados e adaptados como “autenticamente nacionais” (“freqüentemente confundindo o específico com o genérico”), compreendendo-os, no entanto, como fatores do processo de difusão e adaptação das literaturas europeias no Brasil, em que a aproximação da fatura literária ao gosto médio dava o tom.

Assim, a popularização da poesia muito deve à extrema harmonia do verso da década de 1860, conquistada graças ao uso predominante do decassílabo sáfico, sem sua simultaneidade com o sóbrio heroico, aconselhada pelos tratadistas antigos como forma de contenção do ritmo envolvente. Acentuada pela sonoridade gerada pela rima interna, a aliança entre música e poesia cria o entorpecimento da sensibilidade e o enfraquecimento do significado, o que facilita a memorização. Mas Candido não deixa de lembrar que tal aliança não é produto nacional, reproduzida a partir dos poetas portugueses da época. Da mesma forma, a modinha, originária da Itália, foi associada à poesia erudita no começo do século 19, quando foram musicados poemas de Tomás Antônio Gonzaga. Intensificando o uso da aliança entre modinha e poesia, os românticos alcançam difundir textos de poetas eruditos no seio da população. Outro modo com que, segundo Antonio Candido, a literatura romântica alcançou o prosaísmo e a adaptação da linguagem ao gosto médio refere-se ao traço informe da narrativa romântica, que tanto incomoda o leitor de hoje. Nesse tipo de romance, a ênfase no conteúdo é simetricamente proporcional ao descuido com a estrutura do texto, o que resulta do esforço de facilitar a leitura por meio da abolição de enredos ou mitológicos, ou baseados na história da Antiguidade e mesmo obedientes às convenções de cada gênero.

No arremate do livro, após enfatizar as ilusões de que a literatura brasileira não se consigna às europeias, Candido traça três pressupostos básicos de uma comparação entre as duas, mas levando em conta um dos maiores méritos de seu método de análise, isto é, a atenção ao texto literário. Neste, a relação entre as duas literaturas ocorreria ou por mera transposição, em que concepções, lendas, imagens e situações ficcionais são adaptadas de modo a criar a impressão de produto nacional; ou por substituição, que altera o empréstimo levando em conta o contexto local, como no caso do retrato do índio como um cavaleiro, do fazendeiro como um fidalgo e do torneio como uma vaquejada; ou por invenção, exemplificada no poema “Meu sonho”, de Álvares de Azevedo, já mencionado, o que não apaga os laços com as literaturas da Europa, “das quais a brasileira é um ramo”. De original nessa relação, resta avaliar os mecanismos e os modos pelos quais a apropriação das literaturas europeias é feita, desde o romantismo até hoje.


CILAINE ALVES CUNHA é professora de teoria literária da USP e autora de O belo e o disforme (Edusp)


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(1) Comentário

  1. Para estudiosos é importante escrever Romantismo,enquanto escola literária, com letra maiúscula para que não se confunda com romantismo, característica presente desde o Trovadorismo, para que quando lermos não confundam-nos. Texto muito bom.

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