A violência que não respeita o isolamento

A violência que não respeita o isolamento
Ato Vidas Negras Importam, 31/05, Palácio da Guanabara, Rio de Janeiro (RJ) (Foto: Reprodução/Twitter)

 

“Em meio à pandemia, uma operação policial na favela. Aqui mesmo onde falta água e a fome se faz presente […]. Se não morrer de vírus ou de fome, te matarão com tiros de fuzil”. O relato acima foi escrito nas redes sociais pelo ativista de direitos humanos Raull Santiago, integrante do Coletivo Papo Reto, coletivo de comunicação independente formado por jovens moradores do conjunto de favelas do Alemão e da Penha. Raull é um dos expoentes de um movimento de favelas que bota a cara, que não deve nada, mas que tem medo. Não à toa, obviamente. Ser morador de favela, preto e pobre, indica que se é sempre alvo da política de segurança pública do Rio de Janeiro. “Quem não deve tem medo sim”, pontua o ativista. No Complexo do Alemão, durante a pandemia, uma operação do Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope), deixou 12 mortos no dia 15 de maio – uma chacina.

Dias depois, um adolescente morador do Morro do Salgueiro, no município de São Gonçalo, foi atingido por um tiro de fuzil dentro de casa, no dia 18 de maio. João Pedro Matos Pinto, de 14 anos, estava na casa de familiares quando uma operação conjunta da Polícia Federal e da Polícia Civil entrou atirando na casa em que ele estava. Baleado, João foi resgatado por um helicóptero do Corpo de Bombeiros. Ficou mais de 17 horas desaparecido, enquanto a família o procurava por diversos hospitais da região e do Rio de Janeiro, sem sucesso. Foi encontrado morto no dia seguinte, no Instituto Médico Legal (IML) de São Gonçalo.

No mesmo dia outro jovem, de 21 anos, foi morto a tiros durante operação policial em Acari. Iago César dos Reis Gonzaga foi baleado e, segundo familiares, sofreu violência policial. Por volta de cinco da manhã, policiais do Bope junto com o Batalhão de Choque da Polícia Militar (PM) entraram na favela de Acari. De acordo com um parente, Iago foi torturado com um saco plástico na cabeça e com uma faca. Depois foi enrolado em um lençol e levado para uma viatura da polícia. A família percorreu delegacias e IMLs em busca de informação, só no dia seguinte obteve alguma, quando o jovem foi encontrado no IML do Rio de Janeiro.

Um dia depois, 20 de maio, o jovem de 18 anos Vitor Gomes da Rocha também foi assassinado pela polícia. A operação policial se deu exatamente quando integrantes do grupo Frente Cidade de Deus realizavam a entrega de 200 cestas básicas para famílias que passam necessidade na favela da Zona Oeste carioca, por conta da pandemia. O Bope entrou atirando na favela e Vitor acabou alvejado. Um vídeo feito momentos seguintes ao tiro que o matou choca pela revolta de um dos integrantes do grupo e pela conduta de sobrevivência de outro membro, ao dizer que eles – pretos e moradores de favela – são alvos da polícia:

– A gente nasceu alvo, a gente nasceu alvo! E já era. João Pedro foi ontem. Esse menor foi hoje. Nós é preto mano, nós é preto mano. Então se acalma.

– Eles são genocida, eles entram matando!

– Eles são. Eles são genocida e nós somos alvo do Estado, mano. Sempre foi assim. Nós é preto mano! Nós é preto mano, então se acalma! Você acabou de distribuir 200 cestas básicas. Eu não vou te perder, você é preto. Se acalma meu mano!

– Eles não têm que matar inocente, eles não têm que matar!

– Eles não têm que matar ninguém, mano!

– Eles não têm que chegar dando bala pros outros.

– Meu mano, eles não têm que matar ninguém. Calma. Nós não vai embora, mas se acalma […] nós não vai sair daqui sem ver quem é, mas calma.

– Eu não vou embora daqui, eles vieram atirando em inocente que estava naquela porta lá. A gente tá fazendo uma ação pra ajudar as pessoas, eles entram atirando, porra!

A estratégia da política de segurança pública do Rio de Janeiro, que nos últimos anos tem ampliado sua letalidade, não deu trégua durante a pandemia. Os casos citados são apenas alguns exemplos das dezenas que acontecem durante a pandemia. De acordo com levantamento da plataforma Fogo Cruzado, o número de tiroteios envolvendo agentes das forças de segurança – policiais civis, militares, federais, guardas municipais, agentes penitenciários, bombeiros e militares das Forças Armadas – aumentou na Região Metropolitana do Rio de Janeiro durante a quarentena. Enquanto o mundo enfrenta uma pandemia e busca cumprir o isolamento, nas favelas a quarentena tem sido interrompida por tiros. No mês de abril foram registrados 501 tiroteios/disparos por armas de fogo, com 197 pessoas baleadas e 96 mortes. Em 32% desses tiroteios havia a presença de agentes de segurança (no mesmo período do ano anterior, este índice era de 25%). Comparando com o mês de março de 2020, no início da quarentena, os índices são ainda piores: houve um aumento de 12% nos tiroteios e de 34% no índice de pessoas baleadas.

 

“Enquanto o mundo enfrenta uma pandemia
e busca cumprir o isolamento, nas favelas
a quarentena tem sido interrompida por tiros”

 

 

Além da violência em si, dos tiroteios, dos mortos e feridos, as operações policiais nas favelas agravam outros problemas locais. Diversas ações sociais, como a citada na Cidade de Deus, foram interrompidas pela ação das polícias. Em 28 de abril, o corretor de imóveis Leandro Rodrigues da Matta, de 40 anos, morreu com um tiro de fuzil deflagrado por um policial militar em Cordovil, como mostrou reportagem do jornal Extra. Ele estava entregando uma cesta básica na casa de um amigo que passava dificuldades por conta da pandemia. Próximo ao conjunto de favelas do Alemão, a distribuição de cestas básicas foi interrompida por uma ação da PM, que confundiu o caminhão carregado de doações com um de carga roubada – no fim do dia a equipe que fazia a distribuição voltou ao local e conseguir fazer as entregas. Já no Jacarezinho a doação de cestas básicas foi cancelada após uma operação do Bope que culminou em tiroteio, deixando quatro feridos, de acordo com reportagem de Rafael Soares no Extra.

Da mesma forma, interrupções de serviços de saúde ocorreram durante a pandemia. Além da superlotação, 577 unidades de saúde foram afetadas por tiroteios em seu entorno – o que representa 14% das unidades de saúde da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Em boa parte dos casos (28%) havia a presença de agentes de segurança, ou seja, foram ações da polícia próximas dessas localidades. É curioso ainda constatar que em comparação com o período pré-quarentena, a média diária de tiroteios no Grande Rio aumentou durante os meses de isolamento social. A média foi de 16 tiroteios por dia a partir do dia 13 de março, início da quarentena, até o fim de abril, contra 14 tiroteios diários de janeiro até esta data. Para piorar a situação dos moradores de favelas e periferias, a morte de pobres e negros na pandemia em comparação com brancos é cinco vezes maior. Uma explicação é que os pobres dependem mais do Sistema Único de Saúde (SUS). Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) indicava que, em 2008, a população negra representava 67% dos usuários do SUS. Em entrevista à Agência Pública, a médica Rita Borret, da Sociedade Brasileira de Medicina da Família e Comunidade, afirma que “o problema não é a raça, mas o racismo […]. O acesso à saúde da população negra é muito pior que da população branca no país”.

Essa política de segurança pública adotada no Rio de Janeiro, infelizmente, não é novidade para os moradores de favelas e periferias. Os dados de mortes em confrontos com policiais são assustadores – os chamados “autos de resistência” ou “homicídio decorrente de oposição à ação policial”, termos que até janeiro de 2016 eram utilizados para casos de morte durante suposto confronto com a polícia e resistência à prisão (de lá pra cá, essas mortes são registradas como “lesão corporal decorrente de oposição à intervenção policial” ou “homicídio decorrente de oposição à ação policial”). Esse índice havia atingido seu ápice em 2007, ano dos Jogos Pan-Americanos, com 1.330 mortes. Mas, em 2018 e 2019 ultrapassaram esse recorde vergonhoso: foram 1.534 mortos em 2018 e 1.810 em 2019. Os mortos são em sua imensa maioria jovens negros, pobres, moradores de favelas.

 

“A estratégia da política de segurança pública do
Rio de Janeiro, que nos últimos anos tem ampliado
sua letalidade, não deu trégua durante a pandemia”

 

 

Essa elevada taxa de letalidade é um indicador da necessidade de revisão desse modelo de segurança pública baseado no confronto, que se não promove, é conivente com o uso abusivo da força letal e de execuções sumárias, ao mesmo tempo em que expõe também os próprios agentes do estado. O Atlas da Violência 2017 apontou que desde 1980 há no Brasil um processo gradativo de vitimização letal da juventude, em que os mortos são jovens cada vez mais jovens. Enquanto em 1980 o pico da taxa de homicídios se dava com 25 anos, em 2017 essa idade passou para 21 anos, e entre 2005 e 2015 houve um aumento de 17,2% na taxa de homicídio entre 15 e 29 anos. Nesse mesmo período – 2005 a 2015 – foram mais de 318 mil assassinados nessa faixa etária.

Ainda segundo dados do Atlas da Violência 2017, de cada 100 pessoas assassinadas, 71 são negras. A chance de uma pessoa negra ser vítima de homicídio é 23,5% maior do que de uma pessoa branca. Cerqueira e Coelho, no texto “Democracia racial e homicídios de jovens negros na cidade partida”, mostram que, do ponto de vista de quem sofre a violência letal, a cidade do Rio de Janeiro é dividida para além das dimensões econômica e geográfica, mas também pela cor da pele. “No Rio de Janeiro […], enquanto 57,2% das pessoas que se encontram no decil mais baixo de probabilidade de sofrer homicídio são ‘não negras’; 78,9% daquelas que se encontram no decil com maiores chances de sofrer homicídio são afrodescendentes”. E concluem: “a questão social não esgota a explicação das gritantes diferenças de vitimização violenta que acometem mais a população afrodescendente, que refletem, em parte, o racismo ainda prevalente no Brasil” (2017, p. 32).

Historicamente tratados como cidadãos de segunda classe, os moradores de favelas e periferias são passíveis de serem exterminados sem que isso cause qualquer comoção social – a não ser, claro, quando o caso é absurdamente grotesco. O tratamento dispensado a esses moradores pela imprensa é grosseiramente diferente do direcionado a moradores de outras áreas da cidade. O que vemos é que existem dois tipos de violência: uma aceitável e outra inaceitável. As mortes aceitáveis pela mídia – e consequentemente pelo conjunto da sociedade, a chamada opinião pública – são as dos pobres, negros, moradores de favelas. Esse público pode ser exterminado justamente porque são desumanizados, retiram deles suas possibilidades de sentimentos, de identidade e de memória. Passam a figurar apenas como estatísticas, como números de uma guerra em que a vítima é sempre a mesma. E quem atua de forma a definir que vidas têm mais valor e merecem ou não ter destaque e repercussão é a mídia hegemônica, que atua banalizando a vida e a vivência dessa parcela da população. Enquanto as vítimas merecedoras de destaque são humanizadas, tratadas com dramaticidade a ponto de comover a opinião pública, os não merecedores são negligenciados ou serão publicadas pequenas matérias sem qualquer tipo de contexto que possa causar comoção ou revolta. Muitas vezes essas pequenas matérias são capazes de culpabilizar a vítima dessa violência. As vítimas têm sua vida investigada para se buscar a conclusão de que não foram mortas por acaso, que em alguma medida “procuraram” por esse destino. Uma tia de João Pedro, o adolescente de 14 anos morto pela polícia em São Gonçalo, não por acaso, declarou à imprensa que “ele não vai sair de traficante nessa história”, já sabendo como esses jovens são criminalizados – tanto pela polícia, que diversas vezes os incriminam plantando armas e drogas, como pela mídia, que sempre busca um antecedente ou algum deslize do jovem que possa justificar sua morte.

 

“Ainda segundo dados do Atlas da Violência 2017,
de cada 100 pessoas assassinadas, 71 são negras. A
chance de uma pessoa negra ser vítima de
homicídio é 23,5% maior do que de uma pessoa
branca”

 

 

Essa é uma estratégia comum na nossa história. Como apontam Chomsky e Herman, no texto “Banhos de sangue”, de 1976, “certos banhos de sangue parecem ser considerados como ‘benignos’ ou até como positivos e construtivos. Apenas uma espécie muito particular dos mesmos tem jus à publicidade, é julgada atroz e digna de causar indignação” (1976, p. 17). Os autores apontam, em relação ao tratamento dos meios de comunicação, que as vítimas merecedoras de notoriedade são “destacadas com mais proeminência, com mais dramaticidade, serão humanizadas, e sua transformação em vítimas receberá o grau de detalhe”, e a construção da matéria gerará “o interesse e a emoção do leitor. […] Em contraste, as vítimas não-merecedoras receberão apenas ligeiros detalhes, um mínimo de humanização e pouco contexto que cause excitação e raiva” (2003, p. 94). É dentro dessa estrutura que se configura o racismo estrutural enquanto elemento de controle e dominação nas relações de poder. Achille Mbembe esclarece, no seu importante livro Necropolítica, ao pensar a relação entre soberania e violência, que “ser soberano é exercer o controle sobre a mortalidade e definir a vida como a implantação e manifestação do poder” (2018, p. 5). Aponta essa questão a partir do filósofo italiano Giorgio Agamben, exatamente quando indica que o totalitarismo moderno pode ser definido, então, como a instauração, através de um estado de exceção, de uma espécie de guerra “legal” que permite a eliminação não apenas de adversários políticos, mas de categorias inteiras de cidadãos. A criação voluntária de um estado de exceção permanente – mesmo que não declarado – tornou-se uma das práticas comuns dos estados contemporâneos, inclusive nos chamados estados democráticos (AGAMBEN, 2004, p. 13).

Esse contexto de guerra – no Brasil termo comumente usado pelas mídias para tratar do combate ao tráfico de drogas, em especial nas favelas – sustenta hierarquias raciais, e as ações estatais empreendidas em nome da “segurança” se revelam como violadoras de direitos dos moradores dessas localidades: Viver sob a ocupação contemporânea é experimentar uma condição permanente de “viver na dor”: estruturas fortificadas, postos militares e bloqueios de estradas em todo lugar; construções que trazem à tona memórias dolorosas de humilhação, interrogatórios e espancamentos; toques de recolher que aprisionam centenas de milhares de pessoas em suas casas apertadas todas as noites do anoitecer ao amanhecer; soldados patrulhando as ruas escuras, assustados pelas próprias sombras […]. (MBEMBE, 2018, p. 68-69).

Mbembe assinala ainda que esse processo é mais intenso nos países da periferia do capitalismo, nos quais a democracia ainda é restrita e o direito permanece conectado à violência soberana, formando assim uma verdadeira política de produção de morte. Recuperando e relendo o conceito de biopoder de Michel Foucault, ele assinala que o racismo é acima de tudo uma tecnologia destinada a permitir o exercício do biopoder, e que a função do racismo é regular a distribuição da morte e tornar possíveis as funções assassinas do Estado (MBEMBE, 2018, p. 18). É o que ele chama de política de morte, ou necropolítica: a ação do Estado sobre as vidas, decidindo qual vida é passível de luto e qual não é. É o projeto de país que deu certo, como descrito por Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino, mais recentemente, no texto “Encantamento: sobre política de vida”, quando apontam que “o Brasil como estado colonial foi projetado pelos homens do poder para ser excludente, racista, machista, homofóbico, concentrador de renda, inimigo da educação, violento, assassino de sua gente, intolerante, boçal, misógino, castrador, faminto e grosseiro”.

Enquanto a indicação é de que as pessoas fiquem em casa para se manter em segurança por conta da expansão do coronavírus, nas favelas e periferias isso não se reflete. Ficar em casa é tão ou mais arriscado – mesmo que o vírus não entre em sua residência, as balas de fuzil não respeitam o isolamento.

Vitor Castro é editor na Mórula Editorial e doutor em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Este artigo foi escrito para o ebook Para além da quarentena, que reúne 27 textos sobre crise e pandemia e será distribuído gratuitamente a partir da próxima semana no site da editora (mórula.com.br).


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