Violência policial no Brasil: herança da ditadura ou escolha da democracia?

Violência policial no Brasil: herança da ditadura ou escolha da democracia?

Repressão policial durante manifestação dos secundaristas em São Paulo (Foto: Coletivo Mamana)

Na precisa e preciosa síntese do antropólogo Luiz Eduardo Soares, nossas polícias atuais são fruto da tradição [de violências] agregando-se, mais recentemente, a experiência da ditadura. E chancelada, nos últimos tempos, pela própria democracia

 

Sem dúvida que a ditadura é responsável direta pela formatação institucional de uma parte  considerável de nosso sistema policial tal como o conhecemos hoje. No entanto, as forças policiais, como uma das maiores manifestações do monopólio da violência pelo Estado, sempre foram brutais em uma sociedade autoritária e desigual como a brasileira.

Assim, não é correto afirmar que faz pouco mais de meio século, ou seja, apenas após o golpe em 1964, que as polícias começaram a perseguir violentamente setores da população que elas deveriam proteger. Antes isso já se passava com amplas parcelas menos visibilizadas da sociedade, como as pessoas negras e pobres. Mas também é verdade que, durante a ditadura, a repressão se torna mais abrangente e intensa contra as camadas médias, a classe trabalhadora e seu movimento sindical, intelectuais, políticos de oposição, LGBTs e outros grupos incluídos no rol de “subversivos”, “imorais” ou “terroristas”.

Portanto, de um lado, não é possível ignorar as estruturas de longa duração e a persistente cultura política que atravessam a formação da Nação e do Estado brasileiros, marcados por violências constitutivas que se sedimentam e se acumulam nesses séculos de história. Por outro, seria um truísmo sem qualquer relevância analítica e política afirmar, pura e simplesmente, que o Estado sempre foi violento no Brasil, pois uma assertiva dessa natureza, ainda que em boa medida verdadeira, não dá conta de delimitar a forma específica assumida por essa violência em cada momento histórico sob determinado regime político.

Analisar as especificidades da política de segurança pública do período, que era determinada em grande medida pela doutrina de segurança nacional, é fundamental para compreender como o regime autoritário de 1964 a 1988 formatou as polícias que temos hoje.

A ditadura civil-militar adotou de uma série de medidas legais e institucionais que explica muito das atuais polícias: federalizou os comandos, institucionalizou órgãos específicos voltados à violação de direitos humanos, centralizou o controle sobre os assuntos de segurança sob a ótica do “combate ao inimigo interno”, atrelou o policiamento ostensivo aos órgãos e operações de repressão e ao Exército, “sofisticou” as técnicas de torturas e afastou ainda mais as corporações militares de qualquer possibilidade de controle civil e democrático por órgãos externos. Um dos melhores trabalhos sobre este assunto foi escrito pela pesquisadora Maria Pia Guerra e encontra-se disponível para acesso gratuito neste link. Não à toa, uma recomendação da Comissão Nacional da Verdade foi, justamente, a desmilitarização das polícias.

Infelizmente, o tema da segurança pública ficou de fora da agenda da transição. A redemocratização, que atingiu diversas esferas da vida social brasileira, não teve força suficiente para submeter as corporações militares ao controle civil e democrático. Os militares, no processo constituinte, ocuparam um espaço expressivo nas discussões de segurança pública, associando-o à defesa nacional. Por sua vez, os agentes democráticos priorizaram outras agendas, deixando esse assunto dominado pelos “especialistas militares”.

Resultado disso, por exemplo, é que o art. 144, § 6º, da Constituição Federal prescreve que as polícias militares são consideradas “forças auxiliares reserva do Exército”.

Essa formulação, que atrela as polícias às Forças Armadas, em um contexto no qual foi estruturado um aparato repressivo interinstitucional, é uma reprodução literal do disposto no Ato Complementar n. 40, de 30/12/1968, uma norma administrativa que modificou a Constituição de 1967 nesse particular e que foi complementar ao famigerado AI-5 (16/12/1968), que promoveu um endurecimento da repressão na ditadura.

Tais dispositivos estão alinhados com o teor autoritário da Constituição de 1967 e com o Decreto-Lei 317 de 1967, que disciplinou as polícias em um contexto de combate ao “inimigo interno” nos termos da Doutrina de Segurança Nacional. Eles expressam uma concepção de segurança pública e de cultura organizacional que faz das polícias verdadeiros exércitos armados para combate aos que desafiam os poderes constituídos, mesmo quando apenas reivindicam seus direitos.

Considerando que, no Brasil, ainda não houve uma reforma satisfatória das instituições para promover a democratização interna desses órgãos e das concepções e cultura organizacional de seus agentes públicos após a transição, esse problema se torna ainda mais grave.

No documento “Pontos de interesse das Forças Armadas para a defesa na Constituinte”, fica claro como a pressão das corporações militares incluiu esse dispositivo na chamada Constituição Cidadã de 1988: “como podem ocorrer circunstâncias em que (elas) teriam que ser usadas como peças militares de manobra, com o Exército, em defesa nacional, em situação de guerra, em estado de Sitio ou Alarme (que exijam atuação militar) ou em outras situações graves previstas em lei, seria útil cobrir esta hipótese fazendo constar, na Constituição, que essas policias são forças auxiliares e reserva do Exército, para emprego militar em situações de extrema gravidade” (pp. 14-15).

No entanto, o que vemos é que a atuação militarizada e violenta das polícias não está restrita a “situações de extrema gravidade”, conforme essa justificativa citada acima. Ao contrário, a polícia segue reprimindo processos legítimos e normais em uma democracia como a mobilização por direitos.

E o pior: não é o Ato Complementar n. 40 ou a Constituição de 1967 que dão respaldo a essa situação, mas a própria Constituição democrática de 1988.

Em suma, na precisa e preciosa síntese do antropólogo Luiz Eduardo Soares, nossas polícias atuais são fruto da tradição [de violências] agregando-se, mais recentemente, a experiência da ditadura. E chancelada, nos últimos tempos, pela própria democracia.

Enquanto não caminha a proposta de desmilitarização, tal qual prevista na PEC 51, é preciso mudar a cultura organizacional, priorizando uma formação pautada pelos direitos humanos, aumentando o controle externo das polícias pelo Ministério Público, Defensoria Pública e Judiciário, buscando mecanismos de policiamento comunitário mais transparentes para a sociedade, dar melhores condições para órgãos como as Ouvidorias. Essas já seriam medidas importantes no atual contexto, mas a desmilitarização com uma carreira única sem cindir as polícias civis e militares, com mais controle externo, melhores condições de trabalho e um rearranjo do pacto federativos são também pontos fundamentais para avançarmos.

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