Urgência & coleção no último livro de Horácio Costa

Urgência & coleção no último livro de Horácio Costa

 

Desde a publicação de “Ravenalas” (2008), os versos de Horácio Costa adquiriram certo caráter de urgência que tem modificado os limites de sua poesia. “A hora e vez de Candy Darling” (2016), nesse sentido, não é diferente. A militância gay – como operada aqui – se torna uma inscrição radical, porque, sem abrir mão do tom afirmativo, acaba por questionar visões normativas do passado, ao abalar a escrita da história com versões e hesitações. Assim, está em jogo, em seus livros mais recentes, um processo de revisão da memória que, mais do que substituir peças num tabuleiro de xadrez, busca alterar as próprias regras do jogo.

Não me concentrarei, no entanto, nesse processo de revisão. Gostaria é de, neste pequeno espaço de apresentação, flagrar tal caráter de urgência que funciona como uma espécie de estopim do movimento, ao mesmo tempo, formal e político de sua poesia. Tento fazer isso a partir da leitura de dois poemas do livro em questão. E logo depois, como desdobramento dessa urgência, apresento uma brevíssima “coleção particular” de objetos que o poeta nos deixa, coleção essa seguida de um pós-escrito.

1.
O primeiro dos poemas se chama “Nênia para o menino Alex André Moraes Soeiro”. A partir de uma notícia em um portal eletrônico – notícia em vias de desaparecer – Horácio escreve: “o assunto me repugna tanto q eu ñ / consigo como sempre escrever o poema / de forma manuscrita naquele caderno bonito”. A ideia de uma escrita contemporânea ao fato a que ela se refere atinge, é claro, a escrita da notícia. Sabemos disso porque, em tempos eletrônicos, são cada vez mais coincidentes o tempo do fato e o da notícia que lhe dá sentido. E tal velocidade aqui também atinge a escrita do poema:

sai sobre a sílica sai direto & indignado
hoj’em dia é cada x + raro ficar indignado
virei c o brasil 1 casca grossa      1 banal
da violência dita tropical (…)

Como é possível ver, a ideia de velocidade no poema, em contrapartida à da notícia, altera literalmente sua escrita. Dessa forma, a banalidade e descartabilidade da notícia são incorporadas no ato de composição dos versos.

É por isso que o poema assimila materialmente um tipo de economia eletrônica de escrita, numa diferença que intensifica o poder de denúncia, poder esse que aqui é de ordem constitutiva do próprio ato de escrita dos versos. Assim, o assassinato do filho pelo pai ganha mais força: “1 filho veado / ñ dá para aguentar     melhor matar de x”. A intensidade do poema vem do uso de algo típico da notícia on line, isto é, sua condição descartável. Porém, mais do que contrapor o registro do crime ao desaparecimento desse registro dos noticiários, o poema realiza uma inscrição tensionando justamente a denúncia do crime e a vida curta da notícia:

contra este poema agora ñ posso +         no portal
a notícia já saiu do ar         o menino delicado
da Vila Kennedy já não está + lá        morreu d x

“Nênia” é uma forma de canto que gregos e romanos entoavam para os mortos. Como se viu, os primeiros versos já se referiam à escrita do poema, à sua urgência. E o fim do poema, como mostro agora, também: “esta nénia é p dar-lhe algo + do q seus 15 minutos & / dizer q seu pai tem a cara de milhões d brasileiros // homofóbicos”. Assim, Horácio aproveita a lógica de um texto como o “Poema tirado de uma notícia de jornal”, sem exatamente apelar para a ideia de transcrição. O que ele incorpora do jornal é a lógica de proximidade, cada vez maior, entre fato e notícia. Fazendo isso, consegue dar a ver a condição descartável desta e a consequente banalização do crime, segundo uma cultura machista e homofóbica. Com isso, o poema – no seu lugar de fragilidade – acaba por atuar politicamente ao refletir sobre si mesmo.

2.
Ainda no que diz respeito ao caráter emergencial dessa poesia, o segundo poema se chama “Carta ao Francisco acerca do suicídio de Clotilde Orozco”. De novo, pelo título, assim como na “nênia” anterior, encontramos uma espécie de etiqueta de gênero: “carta”. Seus primeiros versos são assim:

Choro enquanto escrevo
não consigo não escrever
para você
tentei falar ao telefone
dá fora de área

sei lá
fora de área estou eu
depois de haver ido ao bota-fora dos objetos
da Clô

A carta-poema para o amado é a substituição de um telefonema. Mais uma vez estamos diante de versos em tensão com formas de comunicação descartáveis. No poema anterior, Horácio já havia se colocado, segundo suas palavras, noutro lugar que não o lugar “da escrita literária”. Neste poema em que esperaríamos um desabafo sobre o suicídio da amiga, encontramos – convivendo com a morte de Clô – uma lista dos objetos dela que a personagem do autor escolhe para levar consigo. São dois planos radicais do poema. Num deles lemos: “não não / a morte é a morte é o momento / em que as coisas vão para aquele lugar de onde de fato elas nunca saíram (…)”. Para em seguida toparmos com os seguintes versos:

pois, comprei algumas coisinhas

dois livros um deles O ano passado em Marienbad
L’Anneé Dernière à Marienbad
e outro sobre o homoerotismo na obra de Fernando Pessoa

Os planos no poema continuam a se justapor como se o peso da meditação sobre a morte fosse ao mesmo tempo atenuado e intensificado pela enumeração, algo irônica, dos objetos adquiridos. Outro exemplo: “os poetas nos matamos muito menos do que devíamos ou podíamos / para a maior parte dos poetas realidade é a realidade e ponto / a gente vai se acostumando”. E na sequência, lemos: “comprei também // uma vaporeira de bambu chinesa ou vietnamita / para fazer dumplings ao vapor gyozas ao vapor / talvez a leve para o Rio / comprei um secador de alface porque o meu está quebrando”. Mudanças de andamento assim chamam atenção para o uso que Horácio faz do correlativo objetivo, na medida em que a ausência da amiga se projeta diretamente nos objetos adquiridos no “bota-fora”.

A fusão encenada na justaposição desses planos se dá nomeadamente no fim do poema, quando, ao descrever minuciosamente “uma travessa de porcelana austríaca Alte Wien”, também adquirida na despedida, Horácio intercepta, entre muitos detalhes desenhados ali,

uma corça que olha para a bruma e não para nós já não para nós

uma corça como a Clô

que saltou para o meio do nada

e para sempre

Bj

HC

3.
Georges Perec tem uma bela novela chamada “A coleção particular”. Trata-se de uma espécie de catálogo dos quadros de um colecionador. Um desses quadros representa a coleção completa desse homem. Nele é possível ver com detalhes todos os quadros, inclusive, um quadro onde estão representados todos os outros. Como neste quadro há todos os quadros, ele mesmo também está ali. E assim sucessivamente.  Um quadro dentro do outro, apresentando não só pequenas e secretas variantes, mas também um abismo infinito de repetição que leva a uma espécie de buraco negro, onde o leitor acaba por cair.

Menciono o texto de Perec, porque a carta-poema lida anteriormente estabelece uma relação metonímica com o “A hora e vez de Candy Darling”. Assim como aquele poema elenca os objetos deixados por Clô aos seus amigos sobreviventes, o livro de Horácio enumera objetos espalhados por diversas páginas, oferecendo-os ao leitor. Objetos esses nas quais também, de certa forma, a personagem do autor se projeta, criando limites descontínuos entre sujeitos e objetos. O que diz bastante sobre o estatuto dialógico da primeira pessoa no livro.

Pensando nessa relação entre objetos e sujeitos, acabo me lembrando de um célebre monólogo dramático escrito por João Cabral, aquele em que o poeta pernambucano faz a poeta Marianne Moore falar. Tal poema ajuda a colocar mais elementos nessa relação. Ele diz o seguinte:

Sempre evitei falar de mim,
falar-me. Quis falar de coisas.
Mas na seleção dessas coisas
não haverá um falar de mim?

Como Horácio mesmo diz no início de um poema, “Este é aquele momento no qual se acumulam as coisas”. Assim, conforme o prometido no início, gostaria agora de anexar a este meu texto um pequeno catálogo. É como se as coisas enumeradas – inseparáveis aqui da voz que fala no livro – nos fossem oferecidas num leilão, num bota-fora ou numa coleção.

Primeiro objeto. Ele ilustra o título do livro. Uma foto de Candy Darling, atriz trans, musa de Warhol, morta precocemente e postumamente ícone da cultura pop. Diz o poeta que passou a ter com imagens, como as de Candy, “aquela sensação de quem há séculos colecionava / ossos de mártires em relicários filigranados”.

 Segundo objeto. De volta ao poema sobre a morte de Clô, ficou faltando um objeto que trago agora: “uma jarra prateada com desenho modern-style / para servir limonadas naquelas / tardes vaporosas do Rio de Janeiro”.

 Terceiro objeto. No poema “Bette Davis eyes”, temos um “cilindro inoxidável / Brabantia debaixo da torneira da cozinha. Goteja, goteja, mais do que Nínive, a tal da torneira”. Esse gotejar nos conduz ao rosto de Bette Davis que nos leva, por sua vez, a outro rosto: “Respiro. Sobre o que mesmo escrevo? / pois, sobre o olhar. O de Bette Davis / que já virou hit e assunto no YouTube, / mas também o de minha mãe”. Do cilindro onde caem gotas, no início do poema, até chegarmos ao fim, isto é, ao choro do autor recordando a mãe:

E este texto, terminará com lágrimas?
Eu não escreverei nem mais um verso
sobre os letais olhos de Bette Davis.

Quarto objeto. Agora o poeta mobília seu livro com uma coluna: “comprei-a no leilão / foi um gesto moscovita diria o Álvaro de Campos”. E, logo a seguir, ele acrescenta: “me diga / pode de fato possuir-se um objeto que te leva para trás alguns milênios”. É então que esse misto de coleção, bota-fora e mobília a povoar o livro ganha, ainda mais, ares de uma poética. Sobre a coluna, Horácio escreve: “agora, ela é quem possui o meu olhar”. 

Quinto objeto: um seixo. Já que o assunto é perder o próprio olhar, eis o final de um poema sobre o sexagésimo aniversário do autor:

Em Lisboa, no palácio do Marquês de Fronteira presenciei Fiama Hasse ler em voz baixíssima os seus poemas para um seixo não pequeno e do qual não desviava o olhar. Tinha retirado a pedra de uma bolsa enorme, desproporcional com o seu tamanho de femme mignonne. Corria o ano de mil novecentos e oitenta e nove. Trazia eu abertos todos os poros.

Sexto objeto. Para a casa, para o livro e para o leitor. Deixo aqui na íntegra o poema onde o último objeto se encontra:

Planta xerófila

morro 1 pouco
cada x q vc
diz
até breve
como em Cole Porter
via Ella Fitzgerald
eu ñ consigo
ñ morrer 1 pouco
+ do q o pouco
q já morro dia a dia
de tantos adeuses
1 p cada hora
outro cada palavra
& as lembranças do q ñ retorna +
são
tantos adeuses
& então vc bota lenha na fogueira
deles &
q arde sem se ver
& diz então até breve se cuida
& quem quer ou pode se cuidar do tempo
q saiba q ñ existe como se cuidar
já q o tempo ñ é como acne
ou mesmo câncer d cólon
q podem ser cuidados
com creminho d farmácia
ou ânus artificial

ñ há como cuidar-se do tempo
talvez se despedir menos
estar sempre ali
como planta xerófila
q a fim d contas somos mesmo
ñ importa qto
queiramos ou ñ
no mangue, neste mangue
do amor

Pós-escrito. Depois dessa apresentação que mobilizou a urgência e a oferta de coisas na poesia de Horácio, eu não poderia me furtar de transcrever aqui, como encerramento, este poema que, compondo outra lista, leva o poeta a uma homenagem seguida de meditação:

Visita de Severo Sarduy à fazenda Volta Redonda

Nesta manhã particularmente límpida
sonho que teria levado há vinte exatos anos
o Severo de visita à fazenda de café
de minhas tias. Sonho que ele teria adorado
uma noite na casona de oito quartos
e duas cozinhas: a interna pulcra, eficiente
e a externa com o seu fogão de lenha e
uma fornalha de assar em forma de iglu,
toda fuliginosa e hospitaleira,
além da qual se divisavam em aclive
uma aléia de jabuticabeiras e
frente à qual, no grande alpendre
regido por papagaios barulhentos,
dispunham-se queijeiras inclinadas
com a parte superior apoiada, ao fundo,
na parede caiada sobre a qual, feito
um Arman ou um Sérgio Camargo in nuce,
penduravam-se as dezenas de fôrmas
da maior para a menor e da direita
para a esquerda. Tantas poltronas e
apliques no interior sombreado, passadeiras
com padrão falso barroco ou falso persa.
Sonho-o paralisado frente às cristaleiras,
todas aquelas xícaras de porcelana inglesa
decorada por limões e mandarinas e
os faqueiros de alpaca desfalcados,
cântaros e suas bacias da época do Império
e o cuco e o relógio que toca o Big Ben
a cada quarto de hora. Sonho que comparamos
nomes em francês, espanhol e português:
para Severo seria uma imersão em um
tempo que ele aurait aimé de vivre,
assim muitas vezes interpolava expressões
em seu discurso un tout petit peu blasé.
Teria vivido lá esse regresso ao passado e
à sua província em Cuba: saíra de lá meninote
e antes da entrada de Castro em Havana e
homem lhe levo a Catanduva : e sonho
que não sou eu quem se recorda
de sua visita passados vinte anos,
mas a Tia Naíka que há tanto já morreu
e a quem encontro na terra dos mortos
para conversar sobre quando aparecia
com amigos como hóspedes-surpresa.
Naíka diz sentir-se bem no au-delà
e que se lembra do cubano curioso:
Esse era bem o modo de ser de ambos,
ele perguntador, ela paciente e precisa
nas respostas: um dia lhe teria apresentado
essa espécie de cupido crescido e inchado e
libidinoso, que não falava português
e que insistia aparentar solicitude e
em beijar as mãos das mulheres —
um traço que ela considera repugnante.
Em minha família não se beijam as mãos
das mulheres: somos pouco expansivos e
tais excessos tomamos por cortesanices;
cultivamos algo tosco, contido em nosso estar e
parcimônia nas palavras e nos modos
sociais: em termos ibéricos, me diz
sorrindo minha tia com arroxeados lábios,
somos “escuetos”. Não há tradução
ao português, acrescenta.
E desaparece.

Existirá de fato a América Latina? E:
Sim, j’aurais très très fort aimé
levar Severo à fazenda ancestral.
Porém com ele nunca estive no Brasil:
não houve tempo. A AIDS cortou cerce
nossa bela amizade. Já não o vi
em sua agonia. Foi longa.
A AIDS cortou cerce nosso mundo.
Mas, na manhã particularmente
límpida, não me impede de sonhar.

***

 A hora e vez de Candy Darling. Goiânia: Martelo, 2016.

***

Leonardo Gandolfi é poeta e autor de, entre outros, Escala Richter (7letras, 2015). Também é professor de Literatura Portuguesa da Unifesp e um dos editores da Luna Parque Edições.

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