Uma ponte entre Paris e Mariana: devemos ser “humanos” e “críticos”

Uma ponte entre Paris e Mariana: devemos ser “humanos” e “críticos”

A cada tragédia, as redes sociais são tomadas, de um lado, por imediatas manifestações de solidariedade e, de outro, por críticas legítimas que questionam por que algumas tragédias sensibilizam mais a opinião pública mundial do que outras.

Tais posições não são, a meu ver, antagônicas. Aliás, me parecem perfeitamente conciliáveis. Podemos e devemos ser “humanos” e “críticos”, sempre e ao mesmo tempo.

Comparar tragédias para deslegitimar a indignação em curso com algo que acabou de ocorrer é estúpido, pois toda violência injusta deve comover. Outra coisa é indagar as razões pelas quais os meios de comunicação controlados por pequenos grupos decidem que determinados sofrimentos são mais lamentáveis do que outros. Isso pode ser feito sem comparação de tragédias.

Mariana (MG) – Rompimento de duas barragens da mineradora Samarco em 5 de novembro (Antonio Cruz/Agência Brasil)

Questionar os regimes hegemônicos de visibilidade e de sensibilização, que definem em última instância quem são as vítimas e a quantidade de empatia que elas merecem, não significa relativizar a gravidade de um acontecimento ou não compartilhar sinceramente da dor dessa tragédia.

Assim, é mais do que justa e necessária a enorme reação de líderes mundiais e na imprensa em torno dos atentados do último final de semana em Paris. Foram assassinatos brutais e covardes de civis que merecem toda a indignação.

O questionamento, portanto, não é por que tanta comoção com Paris. Mas por que ainda tão pouca informação, visibilidade, sensibilização e empatia com outras tragédias dos nossos tempos, como a que começou em Mariana/MG ou mesmo os atentados reivindicados pelo Estado Islâmico em Beirute.

Nesse particular, vale pontuar que o atentado em Paris não é o responsável pelo viés colonizado da imprensa brasileira e por sua generosidade com empresas grandes como a Vale. As mídias tradicionais já não estavam dando a devida atenção ao crime ambiental desencadeado em Mariana muito antes da tragédia na França. Então, mais adequado é discutir democratização da comunicação e controle social da mídia ao invés de gastar energia com o concurso virtual de tragédias.

Não se trata, assim, de fazer um ranking das desgraças ou uma fila das prioridades do sofrimento humano. Não tem vítima que valha mais ou menos, seja de primeiro ou de terceiro mundos.

Solidarizar-se com vítimas da França não faz de ninguém colonizado. De outro lado, é bastante perigoso insinuar que o ataque à França significou uma espécie de retribuição merecida pela violência do colonialismo ou por outros males que o Estado francês promoveu na ordem internacional.

Sem dúvidas, a França foi uma potência colonial com todas as barbaridades que isso implica. Mas o Estado brasileiro já teve seus arroubos subimperialistas, de Guerra do Paraguai à ocupação do Haiti, isso sem falar na violência institucional cotidiana e sistemática contra populações marginalizadas aqui dentro do nosso território. Ou seja, em se tratando de Estados nacionais, violência é um sobrenome mais ou menos universal, e o Brasil não é exceção. Se validarmos, em qualquer grau, uma ação terrorista como aquela ocorrida na França, basta um passo para um raciocínio ampliativo legitimar a mesma coisa por essas bandas.

Não se pode esquecer que o Estado é diferente de seu povo. Sobretudo em épocas de marcante crise de representatividade do sistema político. As decisões dos governos não refletem sempre a posição dos governados. As vítimas do atentado foram todas civis, atacadas covardemente em locais públicos, não havendo nenhum símbolo de “imperialismo” ou “militarismo” atingido. Foram vidas humanas ceifadas de pessoas que, inclusive, poderiam ser críticas ao colonialismo francês.

Outra tônica que tomou as redes sociais e as manifestações de opinião deslegitimavam a solidariedade com as vítimas francês, pois temos catástrofes mais próximas à gente. Ora, de tragédia, o mundo está cheio. Do passado, do presente e as que virão no futuro.

Temos de lembrar e sentir por todas, sobretudo as mais esquecidas e silenciadas. Nosso papel é também romper esse bloqueio de invisibilidade, mas com a sensibilidade de não desqualificar gente disposta a se solidarizar, ainda que não com a causa que você considera mais importante no momento.

Até porque as perspectivas não são nada animadoras. Não tenhamos dúvidas de que as consequências desse atentado terrorista serão péssimas para as liberdades e para os direitos humanos em todo o mundo. A lógica da guerra de combate ao terror ocupará mais espaço nas políticas internacionais. A xenofobia e a islamofobia aumentarão significativamente nos países mais ricos.

Assim, o paradoxo instalado é que as guerras em curso e que serão aprofundadas gerarão mais refugiados que, por sua vez, sofrerão mais restrições à imigração para outros países. Isso agravará a situação humanitária de contingentes cada vez maiores da população mundial.

Precisaremos, então, de mais solidariedade a partir de agora e não de menos. Por isso, rezem por quem quiserem e coloquem os filtros nas fotos de perfil que desejarem. E deixem que os outros façam o mesmo. Esse é o melhor caminho, inclusive, para abrir diálogo e explorar as contradições que nos permitam construir um mundo com menos desgraças.

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