Uma po/ética da escuta: ‘vidas rasteiras’, de Alberto Pucheu, e outros lançamentos

Uma po/ética da escuta: ‘vidas rasteiras’, de Alberto Pucheu, e outros lançamentos
É uma poesia da escuta a que se escreve aqui – poesia que fala na medida em que se põe a ouvir vozes outras, menores, coisas não ditas, invisíveis

 

Segundo uma crença muito antiga, criaturas rasteiras tinham o poder de portar mensagens de outros mundos. Deslocando-se ao rés-do-chão, esses seres habitavam o limiar entre o mundo dos vivos e o subterrâneo, para onde se encaminham as almas dos mortos, e essa posição, na sinuosa linha entre o visível e o invisível, entre o presente e o futuro que a todos aguarda, os associava ao dom profético. Era assim que sonhar com uma serpente costumava indicar algum presságio vindo dos deuses ou do além; era assim também que, segundo algumas versões, Delfos, o grande oráculo de Apolo, umbigo do mundo grego arcaico, havia sido fundado sobre o cadáver de uma grande serpente. Chamava-se Pito, era filha da terra e portadora do dom do vaticínio; protetora da região, ciosa de sua condição de arauto da verdade, foi somente depois que ela foi vencida e morta por Apolo que este pôde erigir seu templo e instalar-se como deus solar da profecia. Entretanto, para que os homens não a esquecessem, o novo deus teria que lhe render homenagem, instaurando em sua honra os chamados jogos Píticos e dando seu nome (Pitonisa ou Pítia) à sacerdotisa que agora serviria de veículo dos presságios.

Assim, antes de se instalar como solar, apolínea, humanoide e altiva, a verdade foi animal, foi réptil, e falou a língua das vidas rasteiras. Ainda hoje, há rumores sobre os egressos dessa antiga tradição soterrada – estranhas criaturas que não voltam os olhares para o alto, que não esperam de seres solares ou de pássaros os augúrios com os quais se orientar; velhos devotos do reles, se põem à escuta de vidas menores e colhem suas verdades entre as coisas que se arrastam pela terra.

É à escuta dessas vidas rasteiras que se coloca Alberto Pucheu em seu último livro. No poema de abertura, homônimo à obra e à sua primeira seção – já no portal de entrada para esse mundo sublunar –, se inscreve a questão chave da exploração poética que se seguirá: “qual será o som / dessas vidas / rasteiras miúdas / mimosas / mesmo que frágeis / tentando vingar / tentando se vingar / tentando / se fazer / valer tentando / se adequar / ao que encontrar / pelo caminho”. Poesia que se faz no rastro do rasteiro (mas todo rastro é rasteiro, é rastro do que rasteja, rastro do que há de rasteiro no corpo…). À escuta das migalhas que encontra pelo caminho, a poesia aqui se escreve como coleta, isto é: na medida em que esbarra nos outros em cujos encontros ela se faz. Como dona laura, a filha de potira que teve de fugir de sua aldeia após a morte de chico mendes; como dona leila, despejada após 7 meses sem pagar seu aluguel e agora moradora da ocupação da 9 de julho, ou ainda como davi kopenawa, o líder yanomami que “andava / sozinho tranquilamente / pelas ruas por entre / a multidão tendo mesmo / passado bem perto / de nós”… São vozes e histórias quaisquer, colhidas em ruas de centros urbanos, em bares ou lojas, ao acaso; pequeno rol de criaturas imprevistas nas quais o leitor é convidado a esbarrar. São vidas interrompidas, fissuradas pela violência e pelo desalojamento impostos pelas forças que almejam governar suas (nossas) existências, seres marcados pelos encontrões nada casuais do poder. Como a aluna que interrompe a exposição do professor com o relato do enterro em que o corpo da amiga já falecida é atingido por uma bala perdida. Aqui se morre muitas vezes, aqui não se para de morrer. São “vidas / não contabilizadas” como as das vítimas da pandemia do novo coronavírus, alojadas em presídios, favelas, periferias, aldeias indígenas; vidas que a necropolítica governamental vigente relega às “valas do esquecimento”.

É uma poesia da escuta a que se escreve aqui – poesia que fala na medida em que se põe a ouvir vozes outras, menores, coisas não ditas, invisíveis. E ouvir é tentar “alcançar / em um poema / aquilo que ficou de fora / do poema o fora do poema”: “além / do fim aquém do começo / em off ruídos que vazam / ausências que se encontram / interditas vozes que se encontram / no escuro o amor a impossibilidade / de dizer como dizer um gesto de amor / no calor dos corações compartilhados”. Nessa escuta o poema se expande, como se, para ouvir o que a poesia costuma deixar de fora, fosse preciso prolongar a frase, repetir a busca, até que a linguagem balbucie. É uma poética de fôlego longo a de Pucheu, poesia que escorre, escorregando para fora de si, se espraiando, líquida, por todos os lados. Uma excrita, talvez, que escreve com o fora. Escrita do exterior que não entrega ao leitor o fruto capturado de uma busca já terminada, concentrado na palavra exata ou na imagem certa. Não, o leitor se vê aqui diante de uma perseguição desesperada e contínua, uma procura que coincide com o adiamento, já que o que se procura é justamente o que foge, se adia e escorre para fora.

À escuta dos “fantasmas / da voz”, o poema é

assombrado por muitos outros – menores,

subalternos, esquecidos, invisíveis.

 

Aqueles que costumam ficar de fora: “qual será o som / dessas vidas / afundadas / precárias / grunhindo / entre o excesso / e a falta / na beira / de bares / essas vidas / indígenas / desterradas / desaldeadas / tornadas pobres / mendigas / mulheres / desempregadas / sem conseguirem / pagar / seus aluguéis / suas roupas / suas comidas”. Exilados, desterrados, emigrantes, sem teto… Outros que vivem as potências negativas do não ter lugar, nos quais a poesia se desaloja de si mesma, de qualquer suposto si mesmo. Não para sublimar em belos versos o excesso terrível dessa atopia (não se trata de homenagear a deusa assassinada), mas para tentar descobrir ainda “algo que passa por fora disso tudo”, algo que extrapola a “arma apontada para a nossa cabeça” pelos poderes instituídos e por sua lógica policial. Talvez porque, desde há muito, a vida da poesia tenha sido se pôr à cata desse fora, desse outro: instalar-se no meio do caminho de um não lugar em que são possíveis encontros imprevistos. Mas sobretudo porque é preciso ao menos aprender a escutar esses deslocamentos – como o do vendedor da ortobom, abandonado pelos amigos, forçado a abandonar o grupo de teatro da igreja de que era pastor, após se casar com outro homem.

Muito mais do que uma questão estética, a busca em jogo aqui é de natureza política, ética. Ou ainda: po/ética. Mas é crucial ter em vista que poesia não responde por uma forma, um gênero ou mesmo um discurso entre outros – mas por uma posição em meio a forças (e vozes) diversas. Um ponto provisório para o qual, por ora, não se dispõe de nome melhor do que esse em que nos habituamos a ouvir o transitório e fugidio. Limiar estreito, arriscado, que parece demandar constante atenção e reequilíbrio. É talvez a dificuldade de manter esse não lugar o que comanda a escrita, saltando de poema em poema e tornando necessário sempre outro e outro poema: em meio aos muitos relatos, vozes, discursos e citações, é preciso de novo e de novo discernir as forças em jogo (a interrogação ética implica também uma crítica), esboçar o ponto tênue por onde algo vaza ou corre por fora. Tudo isso para tentar se manter à escuta do outro, para suster o partido – ético-político – tomado na contramão dos empuxos de contenção e apagamento do outro (a arma apontada para a cabeça, as pessoas que amam no outro somente os signos de suas riquezas, a nulificação da experiência da alteridade no turismo, a desconsideração pelas vidas da população, o desejo de ferir, matar, torturar…).

A esse outro impulso, que nos põe no rastro do rasteiro, Pucheu denomina amor, termo que é motivo principal dos poemas centrais do livro e surge já no título de “por amor”, poema em série fortemente dilacerado pelos empuxos diversos. Por detrás de sua desconcertante simplicidade (mas cumpre à poesia também dar novas inflexões a palavras batidas), o que avulta nesse amor é justamente o trabalho de escuta do outro, da língua do outro – mesmo quando ela é incompreensível para o eu: “talvez seja mesmo / por amor / que se vai ao outro / aceitando a impossibilidade / de comunicação aceitando o outro”. Não à toa “por amor” é atravessado por uma viagem (aliás, feita a dois – com o amor, com o outro na figura da poeta e companheira Danielle Magalhães, que assina também o poema a quatro mãos em off). Passando por entre Camboja, Vietnã e Tailândia, nos desalojamos em encontros com culturas e espaços distantes e menores e vemos desfilar diversas figuras da porosidade e do movimento: desde os “motociclistas cambojanos e vietnamitas / que em sua completa desorganização / entenderam melhor do que ninguém que trânsito / é fluxo”, até as “janelas que se parecem com portas” e “que levam apenas ao vazio”. Passando ainda pela comida “feita nas calçadas”, “misturando seu cheiro ao cheiro / de todos e ao de qualquer um / que passa na rua”, chegamos ao motivo constante da escuta do outro que fala em uma língua ou sotaque incompreensíveis: entre o inglês com sotaque local, as conversas incompreensíveis dos atendentes do botequim tailandês e a língua de sinais entrevista de uma mesa de bar, “parece que viajamos / por línguas desconhecidas”, entregues, lançados em meio a muitos outros, “com nada mais do que um ínfimo / de comunicação acreditando / que um ínfimo de comunicação / seja possível para que alguma coisa / dê certo em alguma perdição”.

Viajar-amar passa, então, por se instalar nessa mesa de bar – heterotopia predileta de vidas rasteiras, espaço sem lugar em que tantos encontros se tornam possíveis – e ouvir os ruídos outros que acatamos em toda sua diferença e que dispensam nossa compreensão. Vozes que escutamos efetivamente na medida em que as compreendemos infimamente: fala o outro. Viajar-amar passa também por subir ao alto de uma montanha, na expectativa de uma “vista estupenda”, somente para se surpreender com aquela muçulmana que “cortava / a grama do amplo jardim / de sua comunidade / com uma dessas pequenas tesouras / de cozinha / inteiramente desproporcionais ao corte de algo / fora da cozinha”. Esbarramos de novo no rasteiro, no pequeno (da tesoura), em contraposição ao imenso (da vista). E o que deixa “atônito, encasquetado” – isto é, o que aciona o espanto que comanda a escrita – é a preferência (brincalhona, não dilacerada, vale dizer) pelo menor: “olhou pra mim rindo / dizendo em voz alta apenas / que as outras pessoas gostavam / das grandes tesouras mas ela / preferia fazer daquele jeito / com a tesoura pequena”. Mas é ainda o amor que escutamos naquelas árvores imensas e ancestrais que “estrangulam com suas raízes / monumentais construções antigas / asfixiando religiões derrubando / culturas aniquilando técnicas e tudo / que é estritamente humano”. Entre a muçulmana, engajada na pequena luta com a grama, e a barbárie inocente e maior das raízes descomunais (mesmo que ainda rasteiras, subterrâneas), o que ressoa é sempre a pequenez da empreitada humana: o entendimento de que rasteiro é o espaço respirável, a vida que nos é destinada e possível diante das lentas e longevas potências da natureza.

A força da imagem das raízes destruidoras se contrapõe também ao turismo, como visão nulificada, anestesiada. Se o encontro com o outro se dá sobretudo por acaso, inesperadamente, o turismo se caracteriza por ser uma visão que só vê o que já antecipa, visão que não vê o outro. A viagem-amor só se faz, então, na medida em que se suspende esse “olhar turístico”: “amando tentamos fugir minimamente / dos turistas que há neles e em nós”. Diante de templos belos e ancestrais, mas esvaziados de qualquer experiência do sagrado, a violência das raízes materializa aquele terror sacro capaz de suscitar “ainda e apesar de tudo / alguma esperança e algum pavor” – experiência contra toda expectativa, justamente porque é experiência do que é maior do que nós.

Seja pela escuta, seja pelo olhar (inclusive fotográfico), a inquietação po/ética é sempre a mesma: abrir o espaço para o advento do outro. Essa busca se reveste de toda sua força política quando deixamos o acaso da mesa de bar e adentramos espaços de memória das violências perpetradas por regimes totalitários. Campos de morte, Museu do Genocídio no Camboja, Memorial da Resistência (à Ditadura Militar) em São Paulo recordam espaços de exceção (bem pouco excepcionais em nossa história) marcados por programas de anulação da alteridade. Programas que aprisionam, matam, torturam, violentam e que operam também nos dizeres: censura que impede de falar/pensar, tortura que força a dizer. Não à toa, a po/ética da escuta encontra aí seu reverso radical; e é talvez contra esse fundo que aparece toda a radicalidade de sua defesa da escuta casual, não programática, e de línguas possivelmente incompreensíveis. O outro fala. Ou cala. Ou…

Ouvir é também saber guardar os vestígios dessas

violências apagadoras do outro, e a po/ética se

desdobra em uma “política da memória”.

 

A viagem-amor nos leva agora ao impactante relato da visita ao Tuol Sleng, no Camboja. Um “quase museu / um testemunho da barbárie / o acontecimento terrífico das S-21”, “lugar quase nada retocado”, onde não se vende nenhum suvenir e “a barbárie ainda pulsa”: “vejo o sangue propositalmente / não lavado durante décadas / pelas paredes sujas das celas / coagulado pelos corredores / (…) sangue / concreto que resta de uma vida / que não está mais aqui”. O espanto com o não encontro do outro, com o encontro somente do resto de sua vida no rastro da violência sofrida – é ele que, uma vez mais, comanda a escrita: “escrevo / agora com o sangue da vida / que falta escrevo no não lugar”. Após o impacto com esses espaços (“mais sítios arqueológicos / do que museus”), o retorno ao Brasil é viagem de revolta, quando o Memorial da Resistência (à Ditadura Militar), em São Paulo, revela “uma reconstituição / parcial eu poderia dizer / uma reforma imitadora uma reforma / limitadora”. Sintomático de nossa incapacidade de elaborar o passado de horrores, esse museu parece querer guardar a memória da cooperação entre os presos políticos mais do que a violência crua do regime militar. Quanto a isso, “por amor” é categórico: “não não se sobrepõe / esse nem nenhum outro belo / gesto ao terror / em uma tentativa / de atenuar o terror”. A po/ética que não retoca o outro, que não se arvora a traduzi-lo, é também aquela que precisa recolher, sem maquiagem ou transfiguração sublime, os rastros da tentativa programática de seu apagamento.

Em face dos programas de apagamento do outro, a po/ética da escuta vislumbra seu potencial ocaso e é nessa chave da possibilidade de desaparição que vidas rasteiras se fecha. Ocupando quase a metade final do livro, a extensa série de 21 fragmentos de “Poema para a catástrofe do nosso tempo” parece, ao mesmo tempo, o apogeu e o ponto mais baixo de seu soterramento. Começado uma semana antes do 2o turno das eleições de 2018, quando o pior já se anunciava, esse poema catastrófico canta o refrão da atual falta de alternativas: “Amanhã não será um dia melhor / do que hoje que não é um dia / melhor do que ontem”. Com a vitória e manutenção das forças retrógradas e assassinas hoje no poder, a po/ética da escuta se vê impotente (“Berramos em vão. / Não assustamos mais ninguém”) e faz ouvir aqui com mais força o risco limite que atravessa todo o livro: o de que a escuta do outro não seja mais possível.

Diante de tal soterramento, o que fazer senão fincar os pés no presente, encarando de frente o que ele tem de terrível? E isso sem se furtar à questão inevitável: “para quê poetas e filósofos em tempos / de Bolsonaro e coronavírus?”.

Mas, caso se espere mesmo uma resposta, parece que ela virá ainda da escuta. Mesmo porque a poesia que interessa aqui não é a que fala em nome próprio (como se poesia quisesse dizer alguma coisa, tivesse algo a dizer), mas a que sustenta o limiar por onde outros falam. À vitória do horror, só resta responder com mais escuta, desdobrando-a em uma po/ética do testemunho: “compartilhando vozes, afetos / e feitos na recusa de sermos / destroçados, guardo / testemunhos, notas, notícias / e percepções diárias da destruição”. Retomando um gesto que atravessa toda sua produção poética, Pucheu incorpora ao poema citações diretas de textos alheios. Aqui, no entanto (como já há alguns anos), não se trata de encontrar um poético imprevisto reluzindo em frases quaisquer, mas de olhar o horror do nosso tempo de frente: o que se recolhe são relatos de tortura perpetradas pela Ditadura Militar. Vemos se formar uma espécie de arquivo do horror do Brasil das últimas décadas, quando, além desses relatos terríveis e fortes, o poema incorpora “diversos pontos de vista, inclusive, / os de meus piores inimigos, desde / os quais também falo para tentar retirar / suas armas”. Nessa “superposição de vozes” que dubla as posições antagônicas que têm marcado o Brasil, são coligidas ainda citações (de) genocidas defendendo ditadura, tortura, assassinatos, conclamando a uma guerra civil etc. A lista de horrores seria infindável, e ela não para de crescer quando o poema-arquivo adentra o cenário da pandemia e agrega nomes de patógenos, declarações negacionistas, feitos de governantes e empresários internacionais e falas de teóricos como Nancy, Butler e Mbembe.

Todos parecem comparecer, uma vez que “para responder a esse momento / avassalador em que conspiram / para nos calar”, é preciso “pedir várias ajudas para conseguir falar”. Se o poema parece prestar ouvidos a vozes mais elevadas, é somente porque, nessa po/ética da escuta, toda vida é rasteira, e cada fala vale somente o valor que dá ao reles, o espaço de sobrevivência que permite abrir para o ínfimo. Nomes famosos são, portanto, convocados ao rés-do-chão, para falar no nível dos “novos heróis [que] são as pessoas comuns”; Zizek e Agamben comparecem para responder por frases infelizes, posturas insustentáveis ou para entender a singularidade da situação brasileira. Não à toa, a palavra profética (que ainda não se soube escutar…) virá de um imigrante haitiano anônimo: “Bolsonaro acabou. Você está recebendo mensagem no seu celular. Todo mundo está recebendo mensagem no celular. Você está espalhando vírus e vai matar brasileiros. Você não é presidente mais. Precisa desistir”.

Encorpado por essas outras vozes, o poema envereda pela discussão teórico-política; ou agrega falas em que não se espera encontrar qualquer poesia. De uma ponta a outra, não se resguarda qualquer poético supostamente reconhecível, o que quer que isso queira dizer: “talvez eu esteja aqui longe de um poeta (…) / talvez eu esteja, aqui, como / um cartógrafo do nosso tempo, / como um meteorólogo / dos acontecimentos do nosso tempo / como um historiador das falas / de um presente a criar um antimuseu”. Quando o mais importante é ter “a honestidade de pensar / o nosso tempo”, vidas rasteiras vai até o fim. A poesia “em tempos / de Bolsonaro e de coronavírus” será o que sair disso – o que for capaz de responder à altura desse tempo, permitindo sustentar o “impasse de buscar / o real, inalcançável. / Sustentar esse impasse / me parece o mais / importante, o decisivo, / o de que não se pode / abrir mão”.

É uma poesia do real a de Pucheu, um livro para olhar o tempo de frente. Uma cosmogonia pelo avesso: diante da vitória reiterada das forças do horror, relembrar os derrotados (levantar o tapete para baixo do qual se deseja varrê-los). Mas é preciso ainda lembrar o horror dos vencedores, e isso porque é também com ele que temos de nos haver. O cosmos inteiro e também o caos, o mundo em sua imundície e desarranjo – do menor ao maior. Fala o outro, talvez até aquele que não escuta seus outros: porque à sua surdez se responde com mais escuta.

 

Maurício Chamarelli é doutor em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e professor de Teoria da Literatura na UERJ. É autor, entre outros, do livro de poesia Largo (2010).


[não-ficção] 

por Redação

Primeiro lançamento do projeto das “Obras completas” do advogado negro e abolicionista, o livro reúne textos escritos e publicados na imprensa entre 1866 e 1869. Em mais de cem artigos, Gama versa sobre educação, política e direitos universais, empreendendo uma defesa veemente do ensino público e relacionando-o ao desenvolvimento de uma democracia sólida. Conhecido pelo seu livro de versos Primeiras trovas burlescas, aqui percebe-se a crescente aproximação do autor dos meandros jurídicos, caminho pelo qual lutou contra a escravidão. Quase a totalidade da obra de Gama permanecia incógnita até o momento.

Elegia de amor aos livros e ao universo bibliófilo. O autor, que já escreveu diversas obras sobre a importância do livro, retorna ao tema através de um acontecimento recente. Em 2015, teve de deixar a casa medieval onde morava em Loire, França, e se mudar para um apartamento em Nova York. A travessia continental colocou-lhe uma questão: o que fazer com os 35 mil títulos de sua biblioteca particular? Empacotando as obras, sopesando o que poderia ou não acompanhá-lo no percurso, Manguel revisita seus autores de predileção e reafirma a importância da leitura para uma sociedade saudável e democrática.

Relançamento de um dos mais importantes estudos panorâmicos feitos no Brasil sobre a África antes da colonização. Começando na pré-história, o autor aborda as características e particularidades de diversos povos e etnias, enfatizando seu modo de vida antes de 1500. Técnicas agrícolas e de navegação, religião, cultura material, costumes, línguas e movimentos políticos e de expansão de reinos e cidades, muitas vezes desaparecidos, compõem o estudo. A nova edição conta com um extenso aparato crítico, com mais de vinte textos de autores como José Saramago, Marina de Mello e Souza e Paulo Francis.

Primeiro livro do filósofo chinês a ser publicado no país, reúne sete ensaios que atravessam os fundamentos de sua teoria: a tecnologia e suas novas configurações no mundo contemporâneo. Uma das ideias centrais do autor é a de “cosmotécnica”, tecnologia pensada localmente para sair de impasses políticos e ecológicos de proporção mundial. Com esse conceito, coloca-se em perspectiva a diversidade de tecnologias, com seus valores e epistemologias particulares, fundamental para a superação da atual crise planetária.


[ficção]

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Um dos mais celebrados escritores de suspense policial japonês, Keigo Higashino chega ao Brasil com um romance sobre o sistema prisional do Japão. Takeshi Takejima, para tentar pagar uma universidade ao irmão mais novo, tenta roubar a casa de uma velha senhora rica, a quem assassina ao ser pego de surpresa. Da prisão, vai trocar cartas com o caçula, Tadashi, que passa a ser estigmatizado como o “irmão do assassino”. Enquanto as cartas são um importante elemento de comunicação para o prisioneiro, para o irmão mais novo são um peso, que aumentam seu estigma e terminam por encerrar-lhe todas as portas do sucesso social.

Em seu primeiro romance, a escritora colombiana aborda a vida dos islenhos chamados raizais, em referência à miscelânea étnica que compõe San Andrés, ilha colombiana próxima ao Caribe e à Nicarágua. Ao retornar à sua ilha natal, a protagonista Victoria Baruq conhece antigos raizais que lhe revelam um pouco sobre o seu passado. Paralela à arqueologia familiar, correm os conflitos na ilha caribenha, que vê a modernidade chegar aos turistas na mesma proporção em que é negada aos habitantes locais.

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