Uma estranha saúde: sobre a literatura e o contágio

Uma estranha saúde: sobre a literatura e o contágio
A literatura é uma estranha saúde: uma espécie de vitalidade alucinada, quem sabe (Foto: Jan Mellström/Unsplash)

 

A doença e a saúde parecem sempre ter rondado a palavra escrita. Ou, para dizer de outro modo – algo próximo a Jacques Derrida (A farmácia de Platão) –, o que hoje se nomeia “literatura” seria mesmo, desde tempos remotos, uma espécie de botica: a ela podem ser remetidos os efeitos maléficos dos vícios, dos venenos, assim como os efeitos mais benéficos, curativos ou virtuosos; nela encontramos a cosmética e a perfumaria, mas também a terapia e a higiene. Afinal, uma farmácia sempre dispõe uma vasta provisão de drogas (pharmakía).

Salientou-se a desconfiança de Platão diante dos poetas e dos discursos escritos (A república); mas fez-se igualmente célebre o reconhecimento aristotélico da catarse, isto é, da purificação, da purgação propiciada pela arte poética. Vale dizer: entre a proscrição e a prescrição move-se a literatura, sempre em relação com a política. Ora perturbadora dos juízos, dos espíritos e das emoções, ora apaziguadora dos surtos, dos desequilíbrios e do sofrimento, ela se oferecerá com diversas fórmulas, distintas composições e um sem-fim de apresentações, das mais referenciadas às mais genéricas.

A passagem entre um pólo e outro, em todo caso, não é, necessariamente, uma questão de dosagem: nem todo veneno é ministrado por um erro de cálculo, como uma superdose do que, de outro modo, em sua justa medida, seria apenas remédio. Não se trata, nesse sentido, de evitar textos prolixos. Podemos ser induzidos ao sono, mas ninguém morreria de overdose de Proust. Ou o inverso, igualmente válido: não se pode receitar a máxima, ou qualquer texto breve como garantia última de bons resultados. Como sabemos, a vitalidade de Nietzsche, que tantas vezes se valeu de sentenças e de aforismos intempestivos, foi nocivamente adulterada pela instrumentalização dos ideólogos da morte nazifascistas. E, como também sabemos, apesar de todos os seus encantos, um tweet pode, com frequência, ter a mesma consistência de um placebo, ou seja, se muitas vezes ele produz efeitos sensíveis, não passa, nesses casos (como uma substância vazia), de um medicamento fake.

O excesso que está em questão parece ser de outra ordem. Se há oscilação entre o veneno e o remédio é porque há, a rigor, uma impossibilidade de separação primeira ou última entre os valores: é porque se trata, justamente, entre um e outro, de uma indissociação. É um excesso, mas de sentidos possíveis. Phármakon quer dizer, ao mesmo tempo, veneno e remédio (como se um fosse feito do outro); mas o termo também articula os significados de filtro, droga, pintura, perfume, feitiço. Como resumiu Roberto Esposito, é o que se opõe ao seu outro sem excluí-lo, antes o contrário, fazendo a sua inclusão e podendo até substituí-lo de maneira vicária (Immunitas: proteção e negação da vida). Trata-se assim de uma não-substância, uma não-identidade, uma não-essência; o que se expõe, como vemos, num campo semântico complexo e carregado de tensão, que só pode ser reduzido a um significado único e estável por força de uma decisão – decisão essa que, sendo algo arbitrária e sem dúvida parcial, será ainda inevitavelmente ilusória, na medida em que relegará ao silêncio as demais possibilidades em jogo, deixando, não obstante, a marca desse silenciamento.

Derrida nos lembra que, no ensaio platônico, “Sócrates compara a uma droga (phármakon) os textos escritos que Fedro trouxe consigo”, e que, operando “por sedução, o phármakon faz sair dos rumos e das leis gerais, naturais e habituais”. Sócrates, filósofo que limitava seus caminhos ao interior da cidade, é levado por Fedro, ou melhor, pela escritura, para fora: é conduzido para campo, além das fronteiras, mas também se conduz até os limites da razão (do logos), enfeitiçado por essa palavra órfã e desobediente, a palavra escrita, que pode passar de mão em mão, e de voz em voz, aberta aos mais variados desentendimentos, sujeita a todas as contaminações. Com efeito, com ela é o pensamento que de-lira: “a escritura, o phármakon, o descaminho”, sintetiza Derrida.

E, no entanto, poderíamos dizer que, na tradição filosófica do Ocidente, o logos teria significado a ascensão do homem-sanitário: homem racional, que fala por si e cuja verdade, presente nele mesmo, em sua própria palavra, é a expressão da sua saúde, capaz de manifestar o justo e o injusto prescindindo de outros suportes. Necessariamente, tal ascensão implicaria um alto nível de imunização do corpo social: a evacuação de outras vozes (digamos, as do povo) que, seduzidas por drogas de todos os tipos, conheceriam apenas os sentimentos inflamados das paixões (pathos), isto é, manifestariam o prazer e o sofrimento, mas pouca saúde, quer dizer, pouca verdade. Só a “decisão” acerca do que está doente – acerca da origem, do desenvolvimento e do resultado da doença – define por contrataste o que está saudável, afirma Roberto Esposito. É esse animal lógico-político que se vê confrontado por Nietzsche em seus pressupostos mais fundamentais. Lemos em Crepúsculo dos ídolos:

“Juízos, juízos de valor sobre a vida, a favor ou contra, nunca podem ser em última instância verdadeiros: eles só possuem o valor como sintoma, eles só podem vir a ser considerados enquanto sintomas. Em si, tais juízos são imbecilidades. É preciso estender então completamente os dedos e tentar alcançar a apreensão dessa finesse admirável, que consiste no fato de o valor da vida não poder ser avaliado”.

Sócrates, que “parecia ser um médico”, continua Nietzsche, propunha como remédio a racionalidade, a fórmula “razão = virtude = felicidade”. No entanto, “a luz diurna mais cintilante, a racionalidade a qualquer preço, a vida luminosa, fria, precavida, consciente, sem instinto, em contraposição aos instintos não se mostrou efetivamente senão como uma doença, uma outra doença. – Ela não concretizou de forma nenhuma um retorno à ‘virtude’, à ‘saúde’, à felicidade…”. Qual o antídoto, então?

Um príncipe sabe que o homem pode muito pouco em suas ações e por isso demora em vingar o assassinato do rei: para ele, a ação se desenvolve por meio da hesitação, assim como a lucidez se mostra através da loucura, a realidade se apresenta pelo teatro, a certeza se resume na dúvida (Hamlet, Shakespeare). Ou a visão de um mundo proteico, em que os personagens eram “tão estranhos que eu não conseguia vê-los claramente, uma espécie de micróbios flutuando no ar, uns glóbulos verdes que pouco a pouco iam tomando características humanas” (Histórias de cronópios e de famas, Julio Cortazar). Ou então, certa manhã, um homem desperta de sonhos intranquilos e se descobre metamorfoseado num monstruoso inseto (A metamorfose, Kafka). Ou um foco periférico, “100% veneno”, voz singular que diz a voz de muitos: “Na queda ou na ascensão, minha atitude vai além/ E tem disposição pro mal e pro bem/ […] Revolucionário, insano ou marginal/ Antigo e moderno, imortal/ Fronteira do céu com o inferno/ Astral imprevisível, como um ataque cardíaco/ Do verso violentamente pacífico, verídico/ Vim pra sabotar seu raciocínio/ Vim pra abalar seu sistema nervoso e sanguíneo” (Sobrevivendo no inferno, Racionais MC’s). Ou ainda, alguém vive uma desorganização tão profunda, torna-se tão estranha a si mesma, que, neste ponto de perda da sua “montagem humana”, só consegue tatear-se: “— — — — — — estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender” (A paixão segundo G. H., Clarice Lispector), etc.

Se a literatura é uma saúde, como escreveu Gilles Deleuze (Crítica e clínica), é em razão da sua indissociação resistente – ela não opera por exclusão (ou… ou), mas por inclusão (e… e). É uma estranha saúde, diríamos, pois sua força reside justamente em sua capacidade de contagiar e de ser contagiada, de metamorfosear-se; um contágio que reincide, ao longo dos tempos, em estados desviantes, disruptivos, e que, além disso, é capaz de simular não as formas mais atenuadas da infecção, mas sim as suas variantes mais virulentas.

Sim, a literatura é uma estranha saúde: uma espécie de vitalidade alucinada, quem sabe; um esclarecimento apaixonado, talvez. Seja como for, uma saúde que reúne o in-sano: a disposição do bem e do mal. Se ela se apresenta muitas vezes com um estado patético, não devém, contudo, patologia, ou seja, não recai em estado clínico, por se encontrar num processo constante, com o qual se elabora, em contínua aproximação a um porvir pretérito; como micróbios flutuando no ar, como se à procura do que segue aguardando em silêncio, prévio, por assim dizer, às decisões e aos juízos.

Diante da “outra doença”, eis a estranha saúde da literatura: seus acessos, suas impurezas, suas contaminações. Esse processo, que performa afinal uma sorte de lógica-a-lógica, é tão mais vivo, intenso e disseminante quanto mais permeáveis são as barreiras imunitárias. Deleuze também escreveu que a “saúde como literatura, como escrita, consiste em criar um povo que falta”. Criar uma comunidade radicalmente imprópria, inassimilável, não-idêntica a si mesma. Proust, e Shakespeare, e Cortázar, e Kafka, e Racionais MC’s, e Clarice, e mais vozes, e outras vozes etc. “Fim último da literatura – continua o filósofo –: pôr em evidência no delírio essa criação de uma saúde, ou essa invenção de um povo, isto é, uma possibilidade de vida”.

O entendimento de que literatura é representação, no sentido (muito restrito) de mera reprodução do já-dado, encontra aqui o seu limite. Sua força é ainda outra: confinando com o impossível e o imemorial, ela apresenta o não-dado (mundos, alternativas, sentidos, formas de vida), isto é, sua potência é a da produção; mas uma produção muito singular, é preciso dizer, já que ela não se esgota na obra, na ação acabada, conservando sua potência afirmativa inclusive quando produz o improdutivo. “Preferiria não”, repete o incontornável personagem de Melville (Bartleby, o escriturário). Em sua condição indecidível e tensa, condição prévia às imposições de sentido, sem lugar próprio, em suma, a literatura é o lugar dessa espera, desse preparo – dessa exigência comum.

Artur de Vargas Giorgi é doutor em Literatura pela  Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e professor de Teoria Literária da  mesma instituição


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