Um olhar sobre a história econômica da ditadura

Um olhar sobre a história econômica da ditadura
A economia do período militar deixou o Brasil fragilizado para enfrentar os desafios da nova revolução tecnológica (Foto: Reprodução/Memorial da Democracia)

 

Entre 1938 e 1963, a economia brasileira tornou-se uma das mais dinâmicas do mundo. Mas, permaneciam problemas estruturais. Na agricultura, o latifúndio tradicional e, na indústria, setores pré-industriais, em contraste com as modernas empresas estrangeiras. A riqueza fluía para o 1% mais rico, sem que a distribuição da renda melhorasse. Tais contrastes fizeram surgir, pela primeira vez na história nacional, um projeto popular, em oposição a um projeto conservador.

Para os populares, a inflação resultava da escassez de oferta. Com crescimento e melhor distribuição da renda, a demanda não pressionaria a inflação. O esforço devia voltar-se, então, para a produção e para a criação de um mercado de massa. Para os conservadores, o Estado deveria produzir apenas o que a iniciativa privada não supria. A inflação, causada por demanda em demasia, exigia reduzir o excesso de dinheiro, elevando os juros e comprimindo salários, créditos e investimentos públicos. O crescimento só ocorreria com base na poupança externa e na produção de bens duráveis para o mercado de alto poder aquisitivo.

O projeto popular exagerava as virtudes do estatismo. Os conservadores exageravam seus defeitos e as vantagens do mercado, relacionando interferência estatal a comunismo. Defendiam a propriedade privada estimulando o medo à reforma agrária. Possuíam a Doutrina da Segurança Nacional e uma nova estratégia de abertura do país, enquanto os populares  tinham o Plano Trienal e a estratégia das Reformas de Base.

Em 1963, os índices de crescimento caíram para 0,2%, a inflação saltou de 42,2%, em 1962, para 88,4%, os investimentos reduziram-se, o desemprego aumentou e o consumo interno restringiu-se. O governo perdeu o controle sobre o déficit público e o país resvalou para a crise política. As armas decidiram a disputa entre os dois projetos, e os militares assumiram o poder.

O governo militar decretou o Estatuto da Terra, criou o Banco Central e o Conselho Monetário Nacional, instituiu a correção monetária, cortou os subsídios à importação, elaborou o Plano de Ação Econômica do Governo, deu garantia aos investimentos estrangeiros e criou o Finame, para investimentos em bens de produção. Aprovou, ainda, a Lei do Mercado de Capitais, criou o BNH e elaborou um Código Tributário centralizador. Substituiu a estabilidade no emprego pelo FGTS e estabeleceu uma nova política salarial. Reduziu a inflação, cortando a emissão de moeda e a oferta de crédito. Para equilibrar o orçamento, elevou tarifas e impostos. E, para estimular as exportações e reduzir as importações, decretou uma maxidesvalorização. Resultado: um fraco desempenho da economia até 1967. Cresceram o desemprego e as falências e concordatas. O salário real caiu 30%. A produção de bens de consumo ficou estagnada. A construção civil e a produção de máquinas tiveram crescimento negativo.

Por outro lado, o governo financiou tratores e outros insumos, elevando a produtividade agrícola e tornando a terra um ativo imobiliário, para transformar parte dos latifúndios em unidades produtivas modernas. As relações de trabalho agrícola modificaram-se. Foram contratados assalariados, em lugar dos antigos agregados, que pagavam renda para produzir na terra que não lhes pertencia. As novas técnicas incorporaram solos até então imprestáveis para a agricultura, como o cerrado do planalto central e do Centro-Oeste e a caatinga nordestina. E a região amazônica foi em parte ocupada por pastagens artificiais para o gado.

Conformou-se um mercado rural restrito, mas próspero, para produtos industriais. Mas surgiram, também, um grande excedente de mão-de-obra e três intensas correntes migratórias. Uma, para as indústrias das grandes cidades, como São Paulo. Outra, para as novas fronteiras agrícolas, no Norte, Centro-Oeste e Oeste, com os migrantes disputando a terra aos grileiros e procurando reproduzir sua antiga condição de produtores autônomos. A terceira, para cidades médias das regiões de monoculturas de cana, laranja e café, na condição de assalariados sazonais, bóias-frias.

A partir de 1967, o governo militar retomou o crescimento, reduzindo o controle sobre o crédito, aumentando o volume de meios de pagamento, institucionalizando a captação das poupanças interna e externa e regulando o funcionamento dos bancos de investimento e conglomerados financeiros, ao mesmo tempo em que mantinha os preços e salários sob controle, através da Comissão Interministerial de Preços-CIP.

Favorecida pela expansão do comércio mundial e pela capacidade pré-instalada, a economia brasileira conheceu o milagre das altas taxas de crescimento. A construção civil manteve uma alta febre de oferta de moradias, arrastando o crescimento de indústrias de bens duráveis, para atender ao mercado de consumo de rendas médias e altas. Mas os bens de consumo não-duráveis cresceram pouco, ante um fraco mercado interno de baixa renda.

O Brasil transformou-se em exportador de manufaturados. No entanto, o volume das importações industriais cresceu muito mais, apontando para a deficiente fabricação interna de meios de produção e para a vulnerabilidade do país a crises internacionais. Assim, quando o Brasil Potência chegou ao auge, em 1973, sua balança de pagamentos apresentou um déficit de 1,3 bilhão de dólares, os preços se elevaram em 35% e, com a explosão da crise do petróleo, ele se viu diante de um mundo em recessão, do declínio geral do comércio internacional e do aumento dos preços do petróleo. E perdeu a capacidade de continuar importando máquinas e equipamentos.

Com o II Plano Nacional de Desenvolvimento, o governo militar pensou superar tais problemas, investindo em infra-estrutura e bens de capital. Tentou substituir importações, renovar exportações, abastecer o mercado interno e eliminar a escassez. Mas, em vez de elevar a poupança, comprimir o consumo e impulsionar as economias de escala e o avanço tecnológico, preferiu o caminho fácil de buscar petrodólares. A dívida externa elevou-se de 12,5 bilhões de dólares em 1973 para 74,4 bilhões em 1982.

Os investimentos elevaram-se levando a crer que o Brasil se tornara uma ilha de prosperidade e a desprezar os fatores de crise, como a pressão sobre a balança externa. As importações, desde 1980, haviam saltado para 23 bilhões de dólares. Quando a inflação e os juros externos aumentaram, na esteira da nova crise do petróleo, o governo acatou as imposições do FMI para poder continuar contraindo empréstimos. Elevou os juros domésticos e induziu as empresas a captar recursos no exterior. Mas a moratória mexicana travou os fluxos de capitais, fazendo a ilha de prosperidade afundar de repente e criar ondas cruzadas de recessão, inflação (200%), desemprego, redução brusca das importações, e a necessidade de novos recursos externos para pagar os débitos anteriores.

O país ainda voltou a crescer, em 1983-84, num esforço descomunal para gerar saldos comerciais sempre maiores. Mas com a dívida externa de 100 bilhões de dólares, e o pagamento de juros em torno de 4% do PIB, não havia segurança de crescimento. Os desajustes estruturais eram visivelmente profundos quando o governo militar foi substituído por um governo civil, em 1984.

É verdade que a ditadura militar criou uma indústria e uma infra-estrutura vigorosas, quase um sistema econômico completo. A agricultura acentuou seu perfil comercial e exportador. Ao lado do comércio, desenvolveu-se um setor de serviços, com destaque para seu aparelho de intermediação financeira. Mas, embora o estatismo tenha se agigantado como nunca, o Brasil aumentou sua dependência aos capitais e às tecnologias internacionais. Seu desenvolvimento ficou atrelado aos recursos externos, que financiaram as importações de consumo das classes de rendas alta e média, em vez de ampliar o parque substitutivo das importações e produtor de tecnologias e máquinas.

A renda dos mais ricos cresceu para 65% do total do país, enquanto a dos mais pobres caiu para 12%. No início dos anos 80, cerca 42 milhões de pessoas viviam com renda familiar inferior a um salário mínimo. E o maior êxodo rural da história brasileira fez com que, de cada três de seus habitantes, um vivesse fora do lugar de nascimento. Mais de 67 milhões de pessoas foram urbanizadas em 40 anos, algo idêntico à construção de quatro Grandes São Paulo. Assim, em lugar de preparar o Brasil para o futuro, a economia do período militar o deixou fragilizado para enfrentar os desafios da nova revolução tecnológica e da globalização da economia.

O processo de rápida expansão das corporações transnacionais, agindo sobre o mercado mundial com seus sistemas informatizados, suas novas tecnologias e suas finanças, atingiu o Brasil num mau momento. Com altos déficits orçamentários e reduzida capacidade de investimento do Estado, os governos que sucederam o regime militar, nos 15 anos anteriores à passagem do milênio, agravaram a estagnação econômica e os problemas sociais. Quadro que piorou, durante os anos 1990, com a desconstrução levada a cabo pelas políticas (neo)liberais, criando ainda maiores dificuldades para o Brasil completar seu parque industrial e tecnológico, resolver seus problemas sociais e ambientais e inserir-se de forma soberana na nova ordem mundial.

Assim, a história da economia do período militar talvez nos auxilie a entender como certos caminhos, aparentemente mais fáceis e de maior aceitação pelos mercados, podem colocar o país diante de crises e obstáculos ainda maiores.


WLADIMIR POMAR é jornalista e escritor, autor de, entre outros, A Revolução chinesa (Editora Unesp), Pedro Pomar, uma vida em vermelho (Editora Xamã) e O enigma chinês – Capitalismo ou Socialismo (Editora Alfa Omega)

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