Um dos volumes mais bem concebidos da história

Um dos volumes mais bem concebidos da história
Capa da primeira edição de ‘O capital’, lançado em 1867 (Arte Andreia Freire)

 

Em 1867, há 150 anos, foi publicada na Alemanha a primeira edição de O capital. Trazia como subtítulo “Crítica da economia política”. Não se tratava de um tema novo na obra de Karl Marx. Ele se interessou pela economia desde a década de 1840, data de suas primeiras anotações sobre o assunto. O projetado livro de crítica daquela que constituía então a principal vertente do pensamento burguês foi postergado várias vezes. Em 1844, Marx redigiu um texto que só foi publicado postumamente, sob o título de Manuscritos econômico-filosóficos. O avanço de suas pesquisas pode ser acompanhado em outros trabalhos: na crítica a Proudhon, em Miséria da filosofia (1847) e, evidentemente, em O Manifesto Comunista (1848).

Após a derrota da Revolução de 1848 tanto na Alemanha como na França, Marx exila-se em Londres, cidade onde passará o resto de sua vida. Dedica-se desde então integralmente ao projeto de uma “crítica da economia política”, premissa da compreensão da sociedade capitalista. A primeira versão desse trabalho, o manuscrito conhecido como Grundisse e publicado apenas em 1939, foi concluída em 1857-1858.

Até a primeira edição de O capital, além de desenvolver conceitos ainda pouco precisos e de redigir os cadernos publicados postumamente como Teorias da mais-valia, Marx concentrou-se na questão da exposição de sua pesquisa. A precisão formal do primeiro livro de O capital (um dos volumes mais bem concebidos da história) soluciona problemas de difícil encaminhamento.

Marx almejava uma redação de fácil apreensão, clara, límpida, que não afugentasse os principais destinatários do livro, os trabalhadores europeus, mas que tampouco dispensasse a exigência de objetividade científica. A principal dificuldade, no entanto, dizia respeito à necessidade de, sem prescindir do relato da gênese, não se limitar a uma exposição da história do capitalismo.

Pode-se dizer que grande parte da atualidade do livro assenta-se precisamente na combinação que faz com que O capital seja essencial a quem queira estudar o desenrolar histórico do capitalismo, mas não pode ser confundido com um mero relato do processo de produção do capital.

O que torna o livro mais que uma história do capitalismo (cuja validade não teria como ir além da segunda metade do século 19) é seu arcabouço conceitual: uma série de categorias e tendências cujos desenvolvimentos podem ser acompanhados e desdobrados para o presente histórico. Na descrição do processo de acumulação do capital, Marx aponta, por exemplo, para a tendência à concentração e à centralização do capital, o que ajuda a entender o recente predomínio globalizado das grandes corporações.

Segundo Marx, a troca mercantil determina não apenas as relações econômicas e jurídicas, mas a própria sociabilidade no capitalismo. A compreensão dos desdobramentos políticos e culturais dessa sociedade não pode ignorar o fenômeno do fetichismo da mercadoria, que estrutura tanto a objetividade das relações econômicas e sociais, como a própria configuração da ciência e da consciência em geral.

O acompanhamento teórico do fenômeno do fetichismo não descuida da elucidação das condições que o desvelam. Em suas diferentes manifestações, no dinheiro, no capital, na esfera da circulação, no âmbito da produção etc., o fetichismo tem por avesso a situação de crise, de tal modo que se torna adequado considerar que o roteiro da crise (econômica, social, política, cultural) é moldado por uma intensificação do fetichismo que, por sua vez, escancara as contradições do capitalismo.

As classes, conjunto dos trabalhadores e dos capitalistas, e, com elas, a figura do Estado entram em cena apenas no capítulo 8 de O capital, quando Marx aborda a duração da jornada de trabalho. Essa, no entanto, é apenas a ponta do iceberg de um conflito social insolúvel que gira em torno do destino da mais-valia. A disputa por ela constitui ainda hoje o fundamento da luta entre as classes e da demanda por (novos) direitos sociais.

Por sua vez, O capital não deixa de afirmar que as relações sociais no capitalismo estão submetidas a mecanismos – o fetichismo, a autovalorização do valor ou a geração de mais-valia – que se caracterizam, entre outros fatores, por compartilharem uma situação de ofuscamento. Esses nexos de obscurecimento são, ao mesmo tempo, causa e consequência de uma modalidade de dominação que Marx designa como “impessoal”.

 

 

 

 

 

 

 

 


RICARDO MUSSE é doutor em Filosofia pela USP e professor do Departamento de Sociologia da USP

(1) Comentário

  1. Marx, o pensador que revolucionou o pensamento crítico contra o capitalismo de exploração. Parabéns por trazer Marx para reflexão.

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